O azevinho da Serra da Freita

Este conto foi premiado, em 2020, em concurso de Contos de Natal organizado pela Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, em Braga.

Contos de Natal


1. O Sonho do Azevinho

Há cerca de dois milénios, numa noite gélida e estrelada, nasceu Jesus numa manjedoura, lá para as bandas de Belém, na Palestina.

Também, nesse dia, muito longe dali, a Serra da Freita, localizada na Ibérica Lusitânia, próximo do grande oceano Atlântico, encontrava-se coberta de neve.

No meio de carvalhos cerquinhos, tojos, urzes, medronheiros, castanheiros e carquejas, pontuavam engalanados com contas, muito encarnadas, os gilbarbeiros e seus parentes os azevinhos de folhas recortadas.

Entre estes sobressaia um azevinho pequenito, enregelado, todo aperaltado, com as suas bonitas bagas vermelhas, muito hirto, em busca do sol.

Não obstante o frio e desconforto do tempo, por ter caído geada, o
azevinho lá adormeceu, meio aquecido por um corçozito que se acovilhou sob a sua bonita ramagem.

Teve então um sonho, que se veio a tornar profético, em que um seu descendente e o Manel, da tia Madalena, se haviam de vir a cruzar, muitos séculos depois, lá na serrania, em salutar parceria comemorativa do nascimento de Jesus Cristo.

Apesar de pequeno e sonhador era também dado à poesia. Tendo deixado cair uma semente, que, sabe-se, ficou escondida debaixo de uma pedra, arrastada pelo pequeno corço, prognosticando o futuro, versejou:

“Aqui deixo esta semente, / Pra mais tarde germinar. / Crescer bonita e imponente, / Pr’ó Manel, no Natal, cortar”

2. A roda do tempo

Viadal
Viadal

A seu lado, lá no pequeno monte, que, cerca de mil e setecentos anos depois, se havia de chamar da Senhora da Ouvida, estavam o avô e o pai do arbusto.

Estes, gostavam de lhe contar o que dali, daquele ponto privilegiado tinham observado, nos seus anos de suave crescimento.

O avô, não se cansava de lhe falar da maneira como viviam os humanos nos castros das redondezas. Vestidos de peles dos cervídeos, ovelhas e cabras lá andavam na labuta diária para arranjar sustento para os filhos e velhos do acampamento.

A bolota, embora moída, não podia faltar. O rio Caima, sempre presente, era uma boa fonte de alimentos, sobretudo com as saborosas trutas e, nos dias de invernia, com os eirós, agora chamados de enguias.

A história que mais gostava de ouvir era aquela em que o seu avô tinha visto os romanos tomarem, pela força das armas, o pujante povoado de Lancóbriga, lar dos Lancobrigenses, situado entre Conimbriga e Portus Cale, lá em frente e à sua direita, no que hoje chamamos de território de Santa Maria da Feira.

Comandava as bravas tropas invasoras um tal centurião, chamado Décimo Júnio Brutus, que tinha tanto de manhoso como de valentia.

O que mais lhe tinha custado ver – dizia o avoengo – foi o passar pela ponta das espadas os velhos e crianças que não tinham podido escapulir.

Sorte diferente calhara às donzelas que, após o estupro, foram levadas como escravas. Já os filhos destas, agora mestiços, depois de libertos, foram incorporados no exército auxiliar, tendo alguns chegado mesmo a posições de comando.

Roma era muito longe e sem soldados, mesmo nativos, a ocupação nunca seria perene. Mais lhe contou que, atravessado o rio Douro, os conquistadores cercaram, meses depois, os brácaros, de origem celta, no sítio onde haveria de se implantar a importante cidade romana de Bracara Augusta.

Na defesa do local, já então habitado, o destaque vai para a valentia das mulheres que, sabedoras do que tinha acontecido em Lancóbriga, combateram estrenuamente ao lado dos seus homens.

Antes a morte do que a escravidão, era o seu lema. O pai, ali à ilharga, esbelto, sem ter quem o admirasse, sentiu, alguns dias após o sonho do filho, vindas do mar grandes tempestades, agora ditas ciclones, que o fizeram e aos seus manos muito abanar. Eram sempre antecedidas do rugir do oceano que, embora lá longe, muito o intrigava.

Ali por Maio, eram as grandes trovoadas que, com o seu ribombar, o faziam sentir-se atordoado. Lembrava-se, muito bem, dos efeitos de um relâmpago que tinha descarregado toda a sua energia sobre um velho e frondoso carvalho que, ali muito perto, ficou todo calcinado com a fúria da energia que sobre ele foi despejada.

Assustados os veados e javalis corriam, a sete pés, pela frondosa serrania, até às bandas da Frecha da Misarela que, lá mais acima, no Caima também sentia os efeitos dos trovões e das fortes chuvadas de granizo que se lhe seguiram.

Já os lobos escondidos, nos seus covis, esperavam que a acalmia voltasse e, atentos, farejavam as presas dos animais que, com a corrida, se tinham aleijado.

No céu, sobre a Freita e a Anta, sempre vigilantes, os peneireiros voavam em busca das presas. Em voo picado lá agarravam, de vez enquanto, um láparo ou passarito descuidado.

No verão, por vezes, cobras, algumas muito azuis que, veio a saber-se, eram as víboras.

Nas noites quentes de verão, dada a abundância de insetos, os morcegos, saídos das cavernas, enxameavam o céu e os “luze cús” faiscavam por tudo quanto é sítio.

Também os seus descendentes que, entretanto, foram nascendo, dali vislumbraram muita coisa. Aí pelo século XIII, um seu tetraneto viu nascer a seus pés, a póvoa do Veadal.

Um outro seu familiar, assistiu, em 1689 ali pertinho, a um importante milagre, em que Nossa Senhora da Ouvida apareceu a uns pastorinhos do povoado.

Feito este que havia de tornar a montanha famosa, não passasse a ser ela a protetora das grávidas da aldeia e lugares circunvizinhos.

Nesse preciso e santo sítio, lá renasce, todos os anos, um ramalhudo e cheiroso rosmaninho, conforme é crença.

Séculos depois, aí por volta de 1951, uma cobra ao deslizar, tomba a pedra onde a semente milenar se tinha alojado.

Embora ressequida, germina com a humidade, e nasce, entre os outros, mais um bonito azevinho.

Pela mesma altura a tia Madalena, fervorosa devota da Senhora da Ouvida, dá à luz um bebé pequenito, que, rezam as crónicas, esteve três meses com os olhos fechados. Sedento de mama era ele. Já pirralho ainda pedia que lhe dessem de mamar.

Aqui chegados, é tradição, na cristandade em geral e na aldeia, agora dita de Viadal, em particular, comemorar a vinda ao mundo de Jesus Cristo, há cerca de dois mil anos.

É tempo de festa! É o Natal!

Para além de uma ceia diferente, em que pontua o bacalhau cozido com batatas e couves tronchas, seguido de aletria e vinho fino, ou seja, do Porto, a capela da Senhora da Ouvida também é embelezada, com um atraente presépio.

É aqui que o Manel e o azevinho, entretanto nascido, se cruzam, conforme o que havia sido pressagiado o Manel já de calções, e conhecedor das primeiras letras, fica sempre maravilhado com o esplendor do presépio da sua ermida.

Colocado ao lado do altar mor, tem, desde sempre, ao meio, um ereto e embelezado azevinho.

Para além da cabana representativa do nascimento do Menino de Jesus, em que este está deitado, numa manjedoura, ladeiam-no os seus pais e demais figuras natalícias.

Destaque para os animais que, com o seu bafo, agasalharam o Menino, naquelas noites frias e estreladas da Palestina. Garbosos, os Reis Magos com os seus turbantes e vestes coloridas. Sabedores da boa nova trouxeram-lhe de presentes ouro, incenso e mirra, como é sabido.

Entretanto, em poucos anos, o azevinho desabrochado, ali pertinho, cresceu e destacou-se pela sua beleza entre todos os outros das redondezas.

Vindos à missa dominical, todos os aldeões de Viadal e povoações cercanas lhe teciam rasgados elogios e o indicavam para embelezar o presépio da capelania.

Querendo instruir o seu filho nas lides da Ermida e nas tradições seculares da aldeia, o pai incumbiu o Manel de ser ele a arranjar o gilbarbeiro para o Natal do ano da graça de mil novecentos e sessenta.

Escusado será dizer que a sorte calhou ao azevinho, já famoso, nascido em 1951.

Munido do podão, e acompanhado pelo pai, golpeou, junto ao solo, o bonito arbusto e transportou-o até à capelania, ali muito perto.

Postado no centro do presépio era digno de se ver, sobretudo quando a luz do sol, entrada pela janela, incidia sobre as suas bagas vermelhinhas e reluzentes. Ninguém ficou indiferente, nomeadamente o padre Correia.

3. A boa nova

Faltavam uns quinze dias para o Natal e o presépio já estava erguido no local de sempre.

Altar
Altar

Vindo celebrar a missa dominical, com o templo repleto de gente, o padre Correia fica estupefacto com o que viu, ali ao lado do altar.

Feitas as necessárias averiguações, foi-lhe dito que tudo aquilo se devia ao engenho e arte do seu sacristão, o Manel.

Vá-se lá saber o “porquê”, mas talvez por ser em latim, às vezes o miúdo, no decorrer da missa, dormitava e não tocava a campainha ou mudava as galhetas no tempo devido.

Como quem não quer a coisa, o prelado, finório que era, não dizia palavra, mas atuava por atos. Fechava o punho e, logo que viável, dava um toque com os nós dos dedos na cabeça do garoto.

Este, dando um salto, de imediato cumpria as suas obrigações. Desta vez não! Foi só elogios para o Manel, inclusive na homilia.

Enquanto dava o Menino a beijar aos paroquianos, ia tecendo encómios ao seu ajudante de missa.

Embora parecido com o de anos anteriores, não se cansava de referir o quão bonito era o azevinho que, colhido pelo Manel, estava no Presépio.

Vai daí, a notícia espalhou-se pelas aldeias do RIBA-CAIMA, fazendo eco até às bandas de Arouca, Manhouce e região de Lafões.

Sobretudo os seus muitos parentes, residentes por aquelas terras, sabedores da novidade, vieram ver o Presépio de Viadal e felicitar o neófito cortador de azevinhos. Não se falava de outra coisa.

Digno de menção, constando já dos anais da capelania, foi o leilão do Menino, realizado no Dia de Reis, após a missa matinal.

Embora sendo já habitual os camponeses oferecerem viveres para licitação pelo valor mais alto, desta vez superou todas as expectativas.

Na verdade, antes da prece religiosa, subindo a serra, os de Cepelos traziam, pendurados nos seus cajados, belos pares de chouriços, curtidos ao fumeiro.

Já os que desciam a Freita, desde Albergaria das Cabras a Manhouce, eram portadores de orelheiras de porco salgadas e, um familiar do garoto da Castanheira, um cabrito vivo.

Das aldeias em redor do Santuário, nomeadamente de Tabaçó, Póvoa dos Chões, Paço do Mato e Vilar, chegaram, em muita quantidade réstias de cebolas e alhos.

Houve mesmo quem ofertasse coelhos vivos de orelhas caídas, galos altivos de crista encarnada e vários pares de garnisés. Regueifas umas quantas.

Para Viadal estavam reservadas algumas surpresas que valerá a pena conhecermos.

Com efeito, se houve aldeões que também levaram os víveres já identificados, as moçoilas, casadoiras da aldeia, esmeraram-se, confecionando bonitos e saborosos bolos de pão de ló, com destaque para o da Rosita.

Arrebitada e esbelta, filha de lavrador, regressado do Brasil, não lhe faltavam pretendentes. Colocado o seu bolo num açafate, coberto com um lindo pano de linho, por si bordado, sobressaía entre os demais.

Na assistência dois candidatos à licitação. Um era de Tabaçó, de pai negociante, e outro de Viadal, filho de agricultor.

Leiloeiro

Postado ao cimo da escadaria que levava ao coro e torre sineira da capela, o pregoeiro, tio Armindo da Caetana, pegou no cestito de verga.

Levantando-o, até ao nível dos ombros, anunciou o conteúdo e nome da oferteira. De seguida deu-se início ao pregão:

– Pregoeiro:
– Quanto vale este pão de ló da Rosita? – perguntou.

– O de Viadal, de menos posses: – 100$00 (Cem escudos)

– Pregoeiro:
– Quem dá mais?

– O de Tabaçó, todo empertigado: – Duzentos escudos

– Pregoeiro:
– Está em 200$00. Quem oferece mais?

– O de Viadal, mas já sem alento: – 250$00.

Pregoeiro:
– Quem paga mais?

– O de Tabaçó, respaldado pelo pai: – 500$00

Na assistência um sussurro e a iguaria lá rumou para Tabaçó.

Foi comida à ceia, nessa noite, veio a saber-se. O padre Correia estava entre os convidados.

Já o de Viadal ficou sem o bolo, mas com os escudos no bolso e, um ano depois, com a Rosita. Casaram na matriz em Cepelos, não se fala, ainda hoje, de outra coisa.

A ganhar com a licitação, que rendeu quatro ou cinco notas de mil escudos – isto não se averiguou bem -, ficou a Senhora da Ouvida.

Basta vê-la, esplendorosa, no seu andor, todo enfeitado de flores, na procissão em sua honra pela Pascoela.

Coberta de um bonito manto azul e com uns reluzentes brincos em ouro, comprados com o montante apurado no leilão.

Já o azevinho, ressequido, ardeu, após o Dia de Reis, na fogueira de um camponês, que por ali passou e o viu abandonado.

Natal de 2020.
Manuel de Almeida [2020]