Lenda da grade d’ouro

Texto adaptado por Maria Hermínia Nadais Lenda da grade d’ouro
Ilustração de Luciana Almeida, Rafael Ferreira e Rui Bastos

Lenda da grade d’ouro

Em tempos muito remotos havia uma pequena casinha, no lugar da Moreira da freguesia de Rôge, onde o João Sineiro vivia com a mulher, a Mariana da Eira. E, tal como era costume na época, além dos cinco filhos tinham consigo também os pais, já velhinhos, e os irmãos solteiros.

Muito embora o trabalho fosse árduo, na agricultura, silvicultura e pastorícia, e as dificuldades económicas fossem bastantes, a sobrevivência estava assegurada.

Mas, a certa altura, durante muitas noites seguidas, o João começou de ver, de forma muito confusa, alguém que lhe repetia sem cessar:

“- Vai à Ponte de Serém… que de lá virá o teu bem!

Intrigado, o João contou à mulher! A princípio, ela não deu qualquer importância ao caso. Mas, a persistência dos sonhos ou visões foi-se tornando tão forte que começou a transtornar a cabeça do João, e a Mariana já não estava nada satisfeita.

Apreensivo e cansado, mesmo contra a vontade da família, o João decidiu partir ao acaso por caminhos desconhecidos à procura da tal Ponte de Serém onde, depois de muito andar e perguntar… finalmente, chegou!

Inacreditável!… João ficou desapontado… pois a ponte era muito simples e quase deserta… desprovida de qualquer grandeza!

Sem saber o que fazer, por momentos, conservou-se parado, silencioso e pensativo….. mas logo começou a movimentar-se sobre a ponte, cabisbaixo, num vaivém constante.

Inesperadamente, apareceu-lhe um homem lá de Serém, que, vendo-o por ali, perdido e desalentado, lhe perguntou o que andava a fazer.

Um tanto envergonhado e tímido, o João contou-lhe toda a sua história, ao que o homem replicou:

Imagine você… vir para aqui atrás de sonhos!… Eu também tenho sonhos! E nos meus sonhos…também já me disseram muitas vezes – “Vai a Rôge, à Ponte do Castelo… que tem lá mais peso de oiro do que o peso de um camelo!” Mas….eu… sei lá se Rôge existe ou não existe… e mesmo que exista, onde raio é que isso poderá ficar?!… E no final… vou para lá… à procura de quê?

O João, que escutava tudo com a maior atenção, replicou:

– À procura de quê? Saiba o Senhor que Rôge existe!… É a minha freguesia! Eu até conheço essa ponte que o Senhor diz. Passo por cima dela muitas vezes. E olhe que faz muitos séculos que viveram por aquelas bandas gentes muito ricas… e no leito do rio Caima, o rio que passa lá na terra, há muitas pedras enormes e escavadas, com buracos muito grandes… dizem que era lá que encantavam as mouras! Quem sabe o que por lá andará? O Senhor está a criticar… mas… nunca se sabe?!…Furioso e descabido, o homem de Serém vociferou:

– Nunca se sabe???!!!… Nunca se sabe o quê? Óh…. homem de Deus!… Vá à sua vida que eu vou à minha. A trabalhar é que a gente enriquece… não é a correr atrás de sonhos….e de mouras encantadas!

E dito isto, afastou-se bruscamente… a resmungar e a abanar muito a cabeça!

João, triste e desanimado, não tinha mais nada a fazer senão regressar à sua terra! E se bem o pensou, melhor o fez!… Mas sempre com o ouro da Ponte do Castelo na cabeça.

E, recordando os sonhos que o tinham levado até ali, ia pensando lá consigo:

– Quem sabe… se não será lá que está o meu bem?!… Pelo sim… pelo não… não custa nada tentar. Logo que eu chegue a Rôge, vou até à Ponte!… Ai isso é que vou!

Chegado a casa, relatou tudo à mulher! A Mariana, ouviu-o atentamente… e concordou com ele. Ela também achava que deviam ter em conta o sonho do homem lá de Serém!

Acalentado por esta ideia, e na esperança de encontrar algo de bom, o João foi inúmeras vezes até à Ponte do Castelo… mas em vão… pois não enxergava nada!

No dia em que já tinha decidido não voltar mais à Ponte… encontrou lá o tal homem de Serém!

Estupefacto e sem palavras… manteve-se a olhá-lo… de longe! Por momentos pensou que o raio do homem, tal como ele fizera, também tinha vindo atrás dos sonhos… mas logo reparou que trazia consigo uns papéis.

Então, encheu-se de coragem, meteu conversa com ele e travaram um pequeno diálogo:

– Bom dia, Senhor! Seja bem aparecido!
– Olá! Bom dia!
– Então… acabou por resolver vir até cá… ver onde fica Rôge!… Como pode ver…. eu não lhe menti! Mas… não eram sonhos que o Senhor tinha, pois não?!… Eram esses papelinhos!…
– Pois eram!… Eram estes papéis velhos e amarrotados… uma porcaria de uns pergaminhos que faz muito tempo encontrei nos pertences dos meus pais, lá no meio de uma lixarada! Quer dar uma espreitada para ver o que dizem?
– Ó amigo! Espreitar o quê? Isso para mim é tudo uma riscalhada!
– Pois… mas esta riscalhada diz que, na margem esquerda do Rio Caima, junto à Ponte do Castêlo, em Rôge, debaixo de uma folhagem espessa e perto de umas alminhas, há um poço muito fundo… e que lá bem no fundo do poço está uma enorme Grade d’Ouro!
– Mas isso é muito bom-replicou o João!
– Claro que é muito bom! O problema é que a tal grade só está visível ao meio-dia em ponto… e para a tirar são precisas três juntas de bois: uma junta de bois pretos…. uma junta de bois vermelhos… e uma junta de bois pretos manchados de branco! Onde raio poderemos arranjar estes bois todos, assim, com estas cores?!… Como vê… não vai ser nada fácil!
– Pois não! Também…se fosse fácil você não me aparecia… eu já entendi! Mas mesmo assim…se quiser… eu posso tentar ajudar!
– Obrigada! Eu aceito a ajuda! Lá em Serém, eu arranjo os bois das manchas… e acho que os pretos também… mas os vermelhos… eu não vou conseguir arranjá-los. Depois… se eu conseguir as duas juntas de bois, as pretas e as manchadas, elas já podem carregar a grade lá para Serém…
– Lá para Serém… até pode ser… mas com condições! Eu arranjo os bois vermelhos… mas… tem de repartir o ouro comigo!
– Está certo!… Eu concordo! Mas temos que guardar segredo para ninguém nos vir importunar.

E… batendo nas costas um do outro como que a selar o compromisso, combinaram o dia para tirar a grade… e foram para casa… a esfregar as mãos de contentes!

O João ficou eufórico! E eufórico como estava, acabou por contar tudo à mulher, prevenindo-a de que tudo teria de ser resolvido em segredo. A Mariana aceitou.

No dia marcado, João pegou nos seus próprios bois e levou-os até à Ponte. Entretanto chegou também o homem de Serém com um outro homem e as duas juntas de bois a puxar um carro.

Atempadamente, alinharam os bois e puseram-nos em posição de puxar. De seguida, amarraram umas cordas bem fortes às cangas dos bois e a uma enorme âncora preparada para prender a grade. E ficaram à espera!…

Ao meio dia em ponto, quando o sino da igreja dava as badaladas para a oração do Anjo, o sol batia no bico do rochedo em frente e a grade brilhava no fundo do poço, atiraram a âncora à água e a grade ficou presa. Os bois puxaram, brandamente, até que a grade começou a aparecer à superfície.

A Mariana, que observava todos os trabalhos escondida entre os arbustos, maravilhada com o sucesso gritou com o maior entusiasmo:

– Graças a Deus… que a grade já aí vem!

As palavras da Mariana…. mais pareceram o fulminar de um raio impetuoso do que as simples palavras de uma mulher!

De repente… não se sabe como… a grade desapareceu… e se não fora a corda, milagrosamente, ter partido… os bois e os homens, irremediavelmente, teriam ido parar também ao fundo do poço!
Entreolham-se… boquiabertos… atónitos… sem respiração… e no mais profundo silêncio!

Sem mais demoras… a Mariana… aterrorizada e de mãos fechadas na cabeça pediu perdão pelo que fez… ao mesmo tempo que ia chamando por Nossa Senhora!

Os três homens… em vez de maldizerem a Mariana pela perca de toda aquela riqueza… juntaram-se a ela chamando também por Maria!

E… depois de afagarem docemente os bois que estavam terrivelmente amedrontados, foram agradecer o gesto da Mariana, de joelhos, junto às alminhas, dizendo todos em coro:

– Riqueza, sim, mas vinda das mãos de Deus! E a nossa maior riqueza é ter descoberto, aqui e agora, as mãos de Deus nas nossas vidas! Se esta mesma frase tivesse sido pronunciada num outro lugar… e noutras condições… que seria de todos nós! Deus seja louvado!

O Sol… parecia mais brilhante, o céu… mais azul, a água do pequeno rio… mais límpida e transparente, o ar mais fresco, a folhagem mais tenra e verde!

Os homens e os bois de Serém, sãos e salvos, regressaram à sua terra.

O João e a Mariana, com a sua junta de bois, foram para sua casa, continuar com a sua lida habitual…

E a “Grade d’Ouro”, com todo o seu brilho, grandeza e riqueza, continuará para sempre escondida no fundo do poço mais fundo da Ponte do Castêlo… na freguesia de Rôge!