A matança do porco

A matança do porco
Aventino Monteiro

O dia estava frio. O alguidar, o cesto de verga, os panos, a foucinha e o “chambaril” estavam a postos e as cordas, a escada de madeira, que o tio Lamego sempre emprestava, estavam no local previamente escolhido.

A matança do porco

O Tio Mário da Alexandrina tinha recebido o convite, tendo dito que sim senhor, que estivessem descansados que viria matar o porco.

Toda a vizinhança recorria aos seus serviços, sendo ele o homem experiente nessas lides.

O tio Lamego, como sempre, apareceu para dar uma ajuda.

A minha mãe, tendo tratado o bicho com carinho, durante tantos meses, nunca assiste ao seu fim, à dita “matança”.

Para as crianças, tudo era novidade, queriam ver tudo, ouvir tudo, até queriam participar.

Nesse dia o candeeiro e o gasómetro tinham sido postos de lado, porque a sua iluminação não era a suficiente: por isso, a energia eléctrica vinha de casa do tio Lamego, numa extensão feita à pressa, atravessando o caminho que seguia em direcção ao Aido-De-Baixo.

A palha de centeio, adquirida em Castelões a um lavrador, junto à Quinta do Cabeço, ou outras vezes em Ossela, na aldeia do Carvalhal, estava arrumada no seu canto.

As agulhas (caruma) e a carqueja, estavam no local determinado.

Tudo organizado, tudo preparado, as mulheres da casa, Tia São e as filhas Zézita e Adília, com a ajuda da cunhada Alice, tudo preparavam, tudo controlavam.

A noite caiu, sentia-se um friozinho no cachaço.

Um frio de rachar, adivinhando-se a geada que viria, o Tio Mário tinha chegado, chapéu na cabeça, o andar um pouco curvado e bamboleante, apesar de ser relativamente novo, trazendo as facas embrulhadas em papel, baixo do braço. Na cozinha a fogueira estava alta.

Em cima das trempes, retorcidas pelo fogo e pelos anos, estava o grande tacho de ferro, enegrecido pelas chamas, onde a água fervia, estando a postos para as necessidades.

– Ó Adília! Chama a mãe velha (minha mãe). Vê lá se no pátio os homens precisam de alguma coisa e leva a garrafa da água-ardente, um copo e um pano para eles limparem as mãos!

Depois seguia-se o ritual, o Tio Mário entrava no curral levando uma corda com que prendia uma das patas traseiras do animal.

Um pouco mais tarde saía, o animal à frente, ele ligeiramente atrás segurando a corda.

O porco era levado para junto da escada de madeira apoiada nos degraus que davam acesso ao palheiro, os homens empurravam o bicho para cima da escada gritando.

– Ó Tino, segura aí na corda e não a largues!

Ele muito compenetrado, cheio de importância pela confiança depositada em si, por isso a segurava com toda a sua força.

De seguida, amarravam o focinho à escada de madeira, fazendo o Tio Mário o trabalho para o qual fora solicitado. Um alguidar por baixo do cachaço e sangrava o animal. Após a matança deitava-se um pouco de sal deixando-o coagular.

Depois de coagulado o sangue era cortado às postas, indo depois cozer no tacho de ferro que há muito tempo fervia, esperando sobre as retorcidas trempes.

Após a matança, o porco era então colocado no local previamente limpo e varrido, iniciando-se então o ritual que era vulgarmente conhecido como tirar a «bola».

Acendia-se uma faixa de colmo (palha de centeio), sendo por norma, manuseada pelo matador, ou por alguém mais experiente, como era o caso do Sr. Lamego.

É necessário muita experiência, porque a chama não pode ficar muito tempo no mesmo sítio, sob a ameaça de a carne poder cozer, não sendo possível depois, retirar a pele queimada.

Era um trabalho, de perícia e experiência. Simultaneamente deitava-se um pouco de agulhas (caruma) sobre as patas, (unhatos), para depois as unhas, saírem mais facilmente.

Os mais velhos iam raspando a «bola» com bocados de telha «nacional», ou algumas facas envelhecidas, que só tinham préstimo para aquela função, sendo guardadas de ano para ano.

Depois da primeira camada de pele estar completamente limpa, o matador ia apalpando os couratos e quando entendia que estavam suficientemente rijos sem estar cozidos, parava com o calor.

Então uma das mulheres trazia um recipiente com água quente e um pouco de sabão.

Cabendo a uma das crianças, com um côco, ir deitando a água às ordens do matador, ou da pessoa encarregue da lavagem nos locais indicados por si.

O sabão era esfregado pelo corpo todo do animal.

Em seguida esfregava-se com uma escova de piassaba, deitando mais água para a última lavagem.

Depois de completamente raspado e lavado, o Tio Mário fazia um corte a todo o comprimento das orelhas, abrindo-as para a lavagem ser mais eficaz.

Nas duas patas traseiras fazia uma incisão junto aos tendões, para que estes ficassem expostos, sendo possível introduzir aí o “chambaril”.

O porco era levado para o curral dos coelhos, onde existia uma trave de madeira, à qual se amarrava uma corda ao chambaril e o animal era então içado ficando com o focinho sensivelmente a dois palmos do chão, conforme o comprimento do bicho.

Aconteceu muitas vezes ele ser transportado para a loja da Tia Cila (Lucília) e do Tio Lamego seu marido, que ficava do outro lado do caminho.

Terminada a tarefa de dependurar o porco, colocava-se um alguidar debaixo do focinho do animal para aproveitar o sangue que escorresse, para depois ser adicionado à carneda qual se faziam as chouriças.

Continuando a tarefa colocava-se um cesto junto ao focinho, forrado quase sempre com um lençol ou toalha branca, cuja função era aparar as entranhas do animal (as vísceras).

O Tio Mário fazia então um corte a todo o comprimento do porco, desde as patas até ao focinho, tendo o cuidado de, se fosse macho, não cortar o órgão genital.

Como mandava a tradição, nesta operação um dos mais novos, era convidado a ir para a parte de trás do porco, para que segurasse com toda a sua força, fazendo-lhe crer que era uma tarefa de muita importância.

Seguidamente, o matador mandava-lhe com o chamado pendericalho. Na cena todos riam, todos se divertiam, incluindo a criança visada.

O pendericalho, era depois pendurado normalmente debaixo da chaminé, para posteriormente servir para ensebar as botas de atanado, (cabedal grosso e resistente, usado no fabrico de calçado para trabalho), tornando-as mais macias e impermeáveis.

Depois desta peripécia com o pendericalho, o Tio Mário com a foicinha rasgava as costelas do porco deixando o resto dos órgãos a descoberto, retirando então os pulmões (fressura) o fígado e o coração, sendo mais tarde aproveitados para fazer saborosos guisados, (no caso da fressura) o coração eram cortados e adicionados à carne das chouriças.

O fígado era de imediato levado para a cozinha onde a mãe velha tratava de o cozer, sendo incorporado, já nessa noite, como parte da ceia, em fatias cozidas ou ainda em iscas com cebolada.

As tripas caíam então para o cesto e depois de tapadas levadas para a cozinha, onde as mulheres, a dona da casa, (minha mãe) a Zézita, a Adília e a Alice iniciavam uma tarefa de perícia e saber, a separação das tripas e do «reçô» o mais pequeno erro podia rasgar e estragar, sujando todo o resto que estivesse dentro do cesto.

A Adília, a Zézita e a Alice, sempre ajudavam nestas tarefas. Vendo fazendo e aprendendo.

Entretanto, o fígado e o sangue iam cozendo. De seguida era servida a bacalhoada, na mesa grande da cozinha.

A broa, o jarro branco e os alhos descascados dentro da velha malga, estavam a postos.

No final servia-se o sangue cozido, fumegante, misturado com alhos e um pouco de banha.

Comer, beber, falar, tanta alegria!

– Ó patrão! diz o Soares, – Venha para a mesa, beba uma caneca junto com a gente!

– Não, estou bem aqui junto do borralho! Respondeu o pai velho (meu pai Artur).

– Ó Adília, dá-me uma travessa para deitar o reçô! Diz minha mãe (Conceição).

A conversa ia animada, os homens falavam de experiências anteriores com as matanças, ora porque o porco deu luta, ora porque fugiu da escada, ora porque o matador não era grande «pistola», todos, mas todos, tinham histórias com piada para contar.

E as crianças estavam fascinadas. Todas aquelas histórias, as conversas de adultos lhes pareciam importantes e aqueles rituais, eram um manancial de aprendizagem, que, só mais tarde, muito mais tarde, saberiam a importância, que isso teria no seu desenvolvimento e crescimento intelectual e humano.

No dia seguinte, as mulheres com a mãe velha sempre presente, o cesto das tripas à cabeça, iam para junto da casa da Ti Idalina do Moreira, descendo por umas estreitas escadas, que as levariam a uma levada, onde a água limpa e abundante,, vinda do açude, lavaria as tripas.

Estas eram lavadas cuidadosamente, viradas ao contrário com a ajuda de um pau fino, com uma galha em forma de «vê», de um dos lados, que todos conheciam como o pau de virar tripas.(Ainda hoje, quando se fala de uma pessoa muito magra, se diz o tipo parece um “pau de virar tripas”).

Depois da tarefa realizada, o regresso a casa.

Chegadas a casa, as tripas eram esfregadas com sal e com limão e depois ficavam a repousar nessa calda até à sua utilização para as chouriças.

Todas as outras tripas mais o bucho, eram escaldadas em água a ferver, depois esfregadas com força à base de sal e limão e guardadas para fazer vinha-d’alho.

O cair da noite, era a ocasião mais aguardada: a desmancha do porco.

O sal tinha sido adquirido na mercearia do Sr. Pinheiro e posto na salgadeira, lavada e limpa.

O Tio Mário chegava com as ferramentas necessárias para o efeito.

O porco era então trazido para cima da mesa da cozinha, mesa grande, velha, forte, quase centenária, sabendo-se apenas que sempre ali estivera, imaginando-se que teria a idade da casa.

Iniciava-se então a desmancha.

Separava-se primeiro, depois abria-se o corpo ao meio, com golpes certeiros, com uma machada afiada, cortava as patas e os pés, depois as pás e os presuntos.

De seguida, retirava duas enormes febras junto às costelas, que em linguagem popular, eram designadas, por «coelhos».

Imediatamente transportadas, para serem preparadas e temperadas, sendo consumidas nesse mesmo dia.

Continuando a tarefa, o mestre cortava os lombos e as costelas e depois separava tudo.

Entretanto as mulheres, tinham iniciado já, a tarefa de cortar e separar a carne, quer fosse para os rojões, ou para as chouriças.

Os couratos (ou coiratos) eram separados do resto da carne, retirando-lhes a gordura para mais tarde, serem adicionados à vinha- d’alho.

O tacho de ferro, em cima das trempes, chiava, cheio de bons e apetitosos nacos de carne entremeada.

Bastante pingue (banha), um pouco de sal, duas ou três folhas de loureiro.

Duas ou mais mulheres, cortavam em bocados mais pequenos a carne, que mais tarde iria ser temperada com cravinho, pimenta, cominhos, colorau (pimentão), alhos, loureiro e vinho tinto, ficando a repousar nessa calda três a quatro dias, para depois serem feitas as chouriças.

Aproveitava-se também alguma carne com gordura, que misturada com a outra dava aquele sabor tão característico às tais chouriças.

Os presuntos e as pás (os membros da frente) eram desossados. O matador, com saber e mestria, fazia então uma incisão, retirando do seu interior uma rótula, que em linguagem popular era apelidada de “joga”.

Incisão, (golpe ou buraco) que, depois de vazia, enchia com sal, alhos e vinho, para impedir que, durante a cura, o presunto se estragasse.

O Tio Mário, continuando a tarefa, cortava a cabeça do porco em duas metades, aproveitando os miolos que misturados com o sangue e alhos, aquecidos na sertã com um pouco de banha, eram uma iguaria, muito apreciada.

Os ossos de assuã e do focinho, assim como os da coluna, depois de alguns dias de sal eram aproveitados para enriquecer e adubar o caldo, servindo muitas vezes e simultaneamente, como segundo prato.

O focinho, a orelheira e as patas, eram então salgados e guardados para serem utilizados no cozido do Domingo Gordo e no Carnaval.

Os lombos eram para os rojões alguns pedaços para distribuir pela vizinhança como mandava a tradição, os restantes rojões eram guardados nos púcaros de barro, ou em latas e cobertos com pingue (banha), para serem consumidos pelo ano fora.

Os costelos iam para a salgadeira. Os coiratos o bucho e algumas tripas serviam para o tradicional vinha – d’alho. Os presuntos e as pás eram salgados. A gordura mais alta era também salgada, para, pelo ano fora, servir para adubar o caldo.

Quatro ou cinco dias depois, procedia-se ao enchimento das chouriças.

Pegava-se então num pequeno funil, normalmente feito em folha-de-flandres, que eu fazia na Latoaria Lindo Vale, onde trabalhava.

Colocava-se a tripa no cano do funil, empurrando a carne com o dedo, fazendo alguns orifícios na tripa com um alfinete ou agulha, para deixar escapar o molho que estivesse a mais e impedindo assim o atraso da secagem e da cura no fumeiro.

Depois de cheias, as chouriças eram passadas em água quente para que a tripa ficasse mais sólida e resistente.

Quando esta tarefa estivesse terminada, as chouriças eram então enfiadas num pau grosso e colocadas ao fumeiro, apoiando o pau num dos lados da chaminé e do outro sobre as barras do secadoiro da lenha, que ficava por cima da porta do forno.

Os presuntos e as pás, depois de algumas semanas na salgadeira, eram então lavados e deixados a secar, para serem então barrados com uma calda à base de colorau, alhos vinho e algumas especiarias.

Mais algum tempo de seca, colocados então em sacas de pano, e pendurados para a cura no fumeiro, quase sempre no teto da cozinha.

Breve nota

O Tio Mário como muitos portugueses, optou pela imigração, França foi o destino.

O meu cunhado Serafim, marido da minha irmã Maria do Céu, foi quem o substituiu nas tarefas da matança, da desmancha e da salga.

Tempos mais tarde, ele e a esposa optaram também por dar o «salto», seguindo o mesmo caminho (Montpellier, França).

Como era necessário arranjar um substituto, foi o Sr. António «Bispo», do Lugar dos Dois, quando solicitado executava essas tarefas.

Algum tempo mais tarde, José, meu outro cunhado, marido de minha irmã Adília, mas que todos conheciam por Soares, passou a responsável por todas as lides.

– O porco e a sua importância na economia caseira e familiar

Os rituais – As tradições – As pessoas as coisas e os lugares –

Espero que estes relatos, tenham contribuído para recordar estas tradições.

Glossário

Alguidar - vasilha em barro
Agulhas ou caruma - as folhas do pinheiro
Borralho - cinza com algumas brasa
Carqueja - planta que cresce nos montes, quando floresce a mesma é amarela
Chambaril - peça de madeira arqueada com dois entalhes nas pontas, que evitam que o animal escorregue quando dependurado pelos tendões
Colmo ou palha - os caules do centeio
Cravinho, cominhos, colorau e pimenta - especiarias adicionadas para dar sabor às chouriça
Côco - vasilha em alumínio ou folha-de-flandres
Desossar - retirar a ”joga” dentro dos presuntos
Entranhas ou vísceras - as tripas do animal
Foucinha - ferramenta para o trabalho no campo, muito usada nas ceifas
Gasómetro - utensílio para iluminação à base de carboneto em pedra
“Joga” - osso redondo ou rótula, situa-se no interior dos presuntos e das “pás”
Telha nacional - telha rústica canelada, em barro pobre
Tirar a bola - raspar a pele do porco, depois de queimada
Trempes - utensílio em ferro, suportava as panelas sobre o fogo
Pau de virar tripas - pau que servia de ajuda no virar das tripas e facilitar a sua lavagem
Penduricalho - órgão genital do anima
Quinta do Cabeço - fica um pouco acima da Praia Fluvial em Burgães
Reçô - aparas de gordura que depois rojadas, eram um petisco muito apreciado
Piassaba - material com que eram feitas as vassouras
Unhatos - as unhas do porco
Vinha d’alho - coiratos e tripas em calda de vinho tinto, especiarias e alho

Coelhosa, 18/11/2008

Aventino Monteiro
(Latoeiro, fazedor de latas)