Meados de Julho, de um ano perdido, no nevoeiro das memórias, duma infância com carências, mas feliz.
Um dia de Verão, daqueles Verões intermináveis, com as férias grandes em andamento, que só os mais idosos (como eu), recordam.
Semanas de calor, que nos recordavam, que a Senhora do Carmo e a Senhora da Saúde, estavam à porta.
Na falta de frigorífico e para mitigar a sede, fui incumbido duma missão importante, ir à Fonte do Com-Adro, com a «moringa», uma bilha de barro com dois bicos, comprada no Mercado da Figueira da Foz, numa ida a Fátima.
Lá chegado, dirigi-me à dita Fonte, situava-se, (situa-se) um pouco acima do antigo lavadouro, uma bica em pedra, rodeada de musgos e fetos, encastrada na parede, da Quinta do Sr. Francisco Bastos.
Dela jorrava água fresca, límpida e abundante. Na base da bica, formava-se um pequeno charco, utilizado amiúde, para a demolha do bacalhau, dentro de um saco de serapilheira.
Ao que consta, das memórias dos mais velhos, a água da dita fonte serviu em tempos para fazer os famosos pirolitos, numa pequena indústria, situada no rés do chão, da habitação do Sr. António Bastos, no Baixinho.
Depois da moringa e do jarro cheios, fazia o caminho de regresso a casa, por um carreiro estreito, entre leiras e campos bem cuidados.
A água vinda dos Valdantes, regava-os em abundância e dava vida, a tudo o que neles se cultivava, tornando-os viçosos e produtivos.
Ao chegar aos terrenos da Quinta do «Juiz», cobrindo o caminho, havia uma frondosa ramada.
Como o Santiago estava à porta, (já pintava o bago) as uvas americanas, luzidias, enormes e deliciosas, deixavam no ar um aroma, que era um regalo para a pituitária.
Como todas as crianças e, porque não, também os adultos, sempre que a ocasião se proporcionava, não perdíamos a ocasião de encher a barriga, e nesse dia, levar o jarro a abarrotar de belas e maduras uvas.
Subi o muro por uma videira, olhei em redor, com receio que o ti Manuel “Pucareiro” (com cara de poucos amigos) ou a esposa, andassem por perto.
Como feitores da Quinta, era da sua responsabilidade, evitar que os rabaceiros, fizessem mossa na colheita.
Não vislumbrando ninguém, era fartar que não vinha gente e se viesse, comiam também.
Depois da barriga saciada e do jarro cheio, subi a calçada junto à casa da ti Maria Perpétua, onde hoje se situam as casas dos herdeiros do Sr. Pinheiro da mercearia.
Passei a ladeira, junto à casa do Sr. Cortes, que o majestoso castanheiro da Dona Carma cobria, ladeira atapetada com as flores do castanheiro (que nós aproveitávamos, para fazer “óculos”).
Por fim, cheguei a casa, com a água fresca. Imediatamente a minha mãe, tomou conta da moringa e passou aos outros para, com sofreguidão, “matar” a sede.
De seguida comiam-se as cheirosas uvas da Quinta do «Juiz».
Hoje a ramada não existe, os campos e leiras estão ao abandono, os caminhos e carreiros não se notam e da fonte, consta, que já não brota a água fresca e límpida de outros tempos.
Os homens, na sua busca constante pelo chamado «progresso», tudo esquecem.
Quem passa pela velhinha fonte, se fechar os olhos, e “olhar com o coração”, ainda ouvirá o gorgolejar da fonte de outrora.
Com certeza, ouvirá as vozes das mulheres, (quem sabe, talvez, a da própria mãe) onde durante horas, lavavam enormes carregos de roupa, que depois acondicionavam em bacias de zinco, entre rizadas, conversavam, sobre tudo e nada, encostadas à pedra do desconjuntado lavadouro.
Ou então, ouvirá nos lameiros da beira-rio, os sons das vozes, dos homens e mulheres, que duma forma laboriosa e dedicada, labutavam nos campos e courelas.
Ajudados por juntas de bois, que num passo lento e pachorrento faziam o seu trabalho.
Os anos passaram, tornei-me adulto, constituí família, depois dum curto período fora da terra, voltei ao Lugar, onde fui feliz.
O ciclo, mais uma vez, repete-se. Também a minha esposa, lavou roupa no velho e desconjuntado lavadouro e bebeu da Fonte do Com-Adro.
Não termino as minhas memórias sobre a saudosa Fonte, sem relatar uma situação real e vivida pelos seguintes protagonistas: o autor, o Manel “Mascato” e o seu irmão Fernando.
Os armazéns do Martins e Rebelo, tinham um corredor de descargas, com acesso pela estrada de Coelhosa, em frente à taberna do António Henriques.
Durante anos, camiões carregados com sacos de leite em pó (magro), faziam fila, para a descarga dos mesmos.
Nesse dia, (como fazíamos sempre que a situação se proporcionava), abeiramo-nos dum dos camiões e à socapa, um de nós rasgou um pouco um dos sacos.
Enchemos um pequeno saco de papel e fomos a correr para a dita fonte, pelo caminho.
Nenhum dos envolvidos, resistiu à tentação de comer algum do pó. Como o leite em pó era magro e muito seco, se não fosse comido com moderação, tinha tendência a colar-se ao céu da boca e garganta.
O Fernando, um pouco guloso, ingeriu duas ou três mãos (já não recordo) cheias do dito pó. A dado momento, começou a sufocar.
Não fora o facto de estarmos junto à fonte, onde ele colou a boca e bebeu sofregamente, enormes quantidades de água, finava-se, ali mesmo. Serviu de lição?
Evidentemente que não! Nas próximas descargas, lá estávamos nós outra vez, na expectativa de ver um saco roto, (se não encontrássemos nenhum, rasgávamos um) para metermos a mão e surripiarmos mais uma malada de leite em pó.
«Moringa, bilha de barro decorada»
Coelhosa, 5 de agosto de 2009
Aventino Monteiro (Latoeiro, Fazedor de Latas)
O caminho até à fonte
Depois de uma primeira descida acentuada, ao fundo, à esquerda, outra descida íngreme até à fonte.