Foi numa Sexta Feira Santa. Com os dezassete anos feitos há dois meses, tinha atingido a idade em que me era permitida a entrada nos filmes para adultos.
Como podia perder este? Nem por nada!
Nessa noite, o Cinema Vale de Cambra, apresentava um filme de terror (sobre vampiros), género com o qual (apesar do medo) me identificava, até porque, ainda recentemente, tinha adquirido o romance de Abraham Stoker, Drácula.
Li à luz do candeeiro alguns capítulos. Quando a trama se tornou mais intensa, mesmo sem música e efeitos especiais, os pêlos do cachaço eriçavam-se. Fechei o livro e coloquei-o dentro duma gaveta, coberto por pilhas de papéis.
Só passados muitos meses, talvez mais de um ano, ganhei coragem para o ler na totalidade.
Voltemos ao acontecimento. Por motivos que não recordo, na noite em que o li, a ceia em minha casa, foi servida mais tarde que o habitual e, por isso, cheguei atrasado ao Café Central do Pinheiro Manso, local combinado para nos encontramos e irmos juntos ao cinema, a cuja matiné já tinha assistido.
Chegado ao café, e no salão principal, estavam uns quantos homens a jogar dominó. A maioria à espera que das dez da noite para começarem o turno no Martins e Rebelo.
Dos meus colegas, nem sinal. Abri as portas do reservado. Ali estava o meu tio Lamego, o Nicolau do “Lau”, com a velha samarra pelas costas, o Meneses da “burra”, a coçar o bigode, o tio Virgolino Leite, o Tio Alfredo “Minhoto”, o tio Amadeu da “Serica”, o ti Teixeira “Estofador” e o Alcindo, que entre golos de vinho e alguns bagaços, falavam de coisa nenhuma, mas os colegas, nem vê-los.
Com o horário do cinema a apertar, guardava a secreta esperança que, por causa do meu atraso, já tivessem ido sem esperar por mim e, mais tarde, no primeiro intervalo nos havíamos de encontrar.
Motivado pelo pensamento positivo, dei corda aos sapatos e parti à desfilada.
Num instante, o Baixinho ficou para trás, a Ponte da Gandra num ápice, era uma ténue imagem nas minhas costas, toda esta pressa tinha como convicção, que lá chegado, o grupo estivesse à minha espera.
Apesar da correria, quando cheguei ao cinema, já a sessão tinha começado. Nada de mais. Sabia que primeiro passavam os desenhos animados, depois os trailers dos próximos filmes e, só depois, a película que me trouxera ali.
Procurei o meu lugar e recostei-me para ver e desfrutar.
Quando o ecrã abriu, houve uma cena que teve repercussões para o resto da noite.
A imagem tinha como cenário uma rua, da qual faziam parte uma casa senhorial e uma igreja, ambas envolvidas por denso nevoeiro. Só a cruz da torre sineira era visível. Nos dois sentidos da estrada, esvoaçavam morcegos.
Eu, com os olhos arregalados, não perdia pitada, apesar dos suores frios e dos pêlos eriçados.
Pensava: – E agora? No final tenho de ir embora sozinho!
Foi nessa angústia que vi o filme. A cada cena mais “terrífica”, interrogava-me: Como é que vou chegar a casa?
Primeiro intervalo. Saí do lugar, fui até ao salão, percorri os corredores, desci ao bar na cave, na esperança de encontrar os meus colegas, e nada. Nem um foi ao cinema!
No segundo intervalo, saí novamente para vasculhar os bares e corredores (até as casas de banho foram passadas a pente fino) com a secreta esperança que me tivesse desencontrado deles. Ninguém! Nem um de Coelhosa ou Pinheiro Manso!
Aí sim, percebi que tinha de arcar com o percurso de volta sozinho e com as imagens que me deixaram de cabelos em pé.
No final da sessão, não fui pelo caminho entre muros e coberto de ramadas, que vinha ter a uma velha carpintaria, ao lado da taberna do “Bom Dia”. Apesar de ser mais rápido, era muito menos iluminado e, por isso, escolhi o percurso mais longo. Vim pelo centro da Vila e depois pela estrada até à Ponte da Gandra.
A partir daí, é que foram elas. As enormes tílias, que ladeavam a estrada desde a ponte até ao Baixinho, por falta de iluminação eram um pouco a cópia do filme. “Fantasmas” por todo o lado, cada ruído, por mais insignificante, era ampliado pela minha mente, formatada pelo filme, e dava-lhes um outro significado.
“Borradinho” de medo, continuei o caminho, sempre pelo meio da estrada, onde a visão periférica melhor controlava os acontecimentos.
Passado algum tempo (que me pareceu uma eternidade) eis-me chegado ao Pinheiro Manso. Suspirei de alívio e nem no café entrei. Mas, o melhor ou pior, e muito mais assustador (pelo menos para mim) estava para vir.
Caminhei em passo decidido, pela estrada de Coelhosa, tentando chegar a casa o mais depressa que as minhas pernas bambas permitiam.
Ao chegar à adega do Bastos e Brandão, um denso nevoeiro (recordam-se da menção ao filme) à altura das casas, cobria tudo. A imagem da casa senhorial (a casa do Juiz) os morcegos, que como era habitual, percorriam velozmente a estrada de Coelhosa para cima e para baixo, a torre da igreja com a cruz na torre sineira, (a capela, hoje da Misericórdia), na minha mente estava montado o filme, sem tirar nem pôr.
Como se não fosse suficiente, a Lua em quarto crescente, iluminava a cruz, dando mais enfâse a todo aquele enquadramento.
Parei junto ao chafariz e pensei: o que é que faço agora?
Se avanço, ainda sai da capela um vampiro, ou pior, os morcegos e ferram-me, como no filme. Se fico, nunca mais chego a casa. Mas que sorte a minha, lamentava-me…
Se me safo desta, nunca mais saio à noite, murmurava em jeito de prece.
Estava eu naquele impasse do vou que não vou, quando, por entre o nevoeiro, vislumbrei o tio Virgolino do “Caçoilo” que, após ter saído do turno, à meia-noite, deixou-se ficar pelo café, talvez a jogar à “traca” ou ao dominó, quem sabe, mas para mim, e sem ele saber, foi a “salvação”.
Antes dele chegar até mim, comecei a andar novamente, tentando mostrar descontração. Aí, com uma confiança redobrada, que nada tinha de natural, eis-me à entrada da porta. Que alívio! A porta aberta e luz acesa. A minha mãe e as minhas irmãs estavam a terminar a limpeza do soalho (já perto da uma da madrugada). Recordo ter murmurado uns sons ininteligíveis a quem estava e, rapidamente, dirigi-me para o meu quarto. Em poucos segundos, estava debaixo das mantas, pronto para sonhar com nevoeiro, morcegos e cruzes.
Lordelo, 27/01/2022
AVENTINO MONTEIRO (Latoeiro Fazedor de Latas) ambas