A Maria


Os olhos vindos do outro lado do mundo fundos de ausência
casavam o branco e o negro para dizerem o que a boca não
conseguia
O nariz afilava de um só traço o rosto magro e os cabelos
errantes fugiam da testa cada pedaço para seu lado
A pele transluzia uma imagem por detrás dos vidros imagem
baça do avesso da vida
Uma dor subtil desenhava os lábios maduros finamente
trémulos como se estivessem prestes a chorar
Nunca alguma lágrima por eles correu ou voou algum beijo
apenas o cigarro acendia e consumia a sua virgindade
A Maria olhava-me sempre fixamente olhos cravados nos
meus como que a dizer tu entendes-me tu és capaz de me
compreender
Ela percebia o sim do meu silêncio por baixo dos olhos
vencidos
Conheci duas mulheres iguais à Maria fotocópias da Maria
ambas se chamavam Maria uma brasileira e outra francesa
uma pisava o teatro outra o anfiteatro
Inquilina de soleiras e vãos a Maria pisava a grande cidade
da noite
As mulheres da fama e da ciência derivavam a vida por
entre a lanugem dos cardos e a tangência do sentimento a
mulher da vida era vertical e secante como folha de piteira
A Maria mijona não tinha idade nem tempo nem antes nem
depois era apenas instante
Nunca se sentara na mesa do canto fugindo de si mesma
escolhia sempre a mesa central desafiando os olhares
vidrando o espaço em seu redor
Comia a sopa o prato de sempre como quem tocava violino
apesar da mão trémula nem um pingo deixava cair no
desbotado regaço sumido de cores pelo uso e abuso
Se moedas cresciam da sopa não dispensava o brande sua
única bebida
Por detrás do corpo sujo de Maria mordiscava uma beleza
intrigante tivesse ela banheira e emergiria da espuma como
sereia das águas
Penso que nunca vi a Maria fora deste retrato para cá da
sombra
Por outro lado tenho a certeza de que já dormi com ela…ou
terá sido um sonho
A Maria nunca mais apareceu
A última vez que a vi não tinha olhos nem boca nem cigarro
não tinha sopa nem brande apenas falta de ar engolira
o violino e a música era uma dispneia sibilante cântico
fúnebre gemido pelas entranhas
Toquei-lhe no ombro e ela percebeu que eu queria levá-la
Levantou a ponta de um sorriso e esboçou um gesto negativo
com a mão
Afastei-me com a sensação de que tinha profanado um
sacrário
A Maria nunca mais apareceu