O Janeiro da minha infância

por Augusto Soares da Carvalhalva

O Janeiro da minha infância

Quando eu era menino, na noite de hoje, de cinco para seis de Janeiro, por todos os lugares da freguesia de Castelões, era o climax dos cantares das Janeiras.

A propósito, e porque lembrar é reviver, abaixo envio um meu texto onde, entre outras coisas, se destaca o Cantar das Janeiras daquele tempo.

Aí por volta de 1960, Janeiro era bem mais frio e duro, mas era bem mais divertido e luminoso do que agora.

Nas aldeias da parte baixa desta minha freguesia de São Pedro de Castelões, onde a geada morava quase a tempo inteiro entre Novembro e Fevereiro, Janeiro decorria sempre diferente dos outros meses do ano.

Logo de manhã, mal as cabeças afloravam fora dos lençóis da cama, aquele choque de frio – entre o ar fresco do quarto e a quentura da nossa cara, acabadinha de desibernar da gruta fôfa em que tínhamos passado a noite – logo nos fazia lembrar que lá fora estava de serviço o mês de Janeiro.

Do mal o menos, era ir para a cozinha a toda a pressa, a lareira já acesa desde as seis da manhã, todos se instalando à roda da mesma, as cadeiras já lá dispostas desde meados de Outubro – só lá para Março haveriam de ser daí retiradas para a parede lateral ao forno onde semanalmente se cozia o pão da família.

Era ali, naquele calorzinho que avermelhava o rosto de todos, que começavam as conversas e os planos do dia, enquanto, aí mesmo, as crianças tomavam o pequeno almoço, que para a mesa, mais distante e fria, só eram obrigados a ir os adultos.

Naquele tempo em que a actividade industrial era ainda insignificante, a vida em Janeiro era simples e fácil, era tratar da alimentação do gado e de derregar os lameiros, onde a erva, que viria a gerar os melhores laticínios do país, era viçosa, dum verde luzidio ímpar a que a geada dava contrastes de prata.

Logo que o sol se esticava inteiro acima dos cumes da Serra da Freita, cerca das oito horas, eram os homens os primeiros a sair de casa, chapéu enterrado na cabeça, duplo par de meias, as de malha mais fina por dentro e as de lã espessa por fora, bem esticadinhas dentro das chancas de grossa base de madeira, enxada ao ombro, assobio solto a condensar os novelos de ar quente exalado no ar gélido da manhã.

E lá iam eles derregar os lameiros, a desfazer as placas de gelo dos carreiros de água que a noite tinha desorientado da necessária distribuição homogénea que a qualidade da erva para o bom leite não dispensava.

E os homens por lá ficavam até às dez (às vezes juntando-se aos vizinhos, que o mesmo faziam nos terrenos ao lado, à conversa, fazendo previsões sobre o ano novo, que dependeria da chuva, conforme quisesse Deus, logo, logo se saberia, era esperar pelas cheias de Fevereiro e de Março do rio Caima) hora a que voltavam a casa para o enche-papo das dez da manhã, “a parva” como então o designavam, após o que por ali ficavam, por casa, a tratar da lenha da lareira e do forno e de outros pequenos afazeres, … vida boa, que o Inverno era o tempo de férias dos lavradores.

Às mulheres só uma tarefa lhes cabia fora de casa – para além da horta, que lhe era próxima, o terreno mais mimoso reservado às sementeiras e plantações das novidades leguminosas da época – era “apanhar a erva” para a alimentação do gado, coisa que não era nada prazeirosa, pois que era nos campos e lameiros mais húmidos e geados que as foucinhas tinham de rapear curtinha a erva, coisa que só faziam bastante depois da ordenha da manhã e da acomodação de todo o gado da casa, que a entrega do leite no Posto da Martins & Rebelo ou da Lacto-Lusa era tarefa das raparigas.

As crianças em idade escolar, logo após o café com leite da manhã, adoçado com açúcar amarelo e engrossado com broa esmigalhada, lá partiam em grupo para a Escola do Côvo, sacola de pano enfiada ao ombro, com os pouco livros que então bastavam – e saco de estôpa dobrado para dentro, na vertical do saco, fazendo de capuz, isto nos dias em que chovia ou prometia chuva – nos pés era o calçado comprado nas duas feiras mensais da Gandra, a maioria dos rapazes de chancas e as raparigas de tamancos, poucos eram os que tinham botas de atanado.

À chegada da Escola a casa, havia sempre sermão e missa cantada, … “onde é que estiveste, seu dianho, até está hora? E nós p’ra aqui arreliados, moiros de trabalho e de preocupações, e vocês na brincadeira até agora, “na boa-vai-ela“.

As crianças mais novas, essas, ali ficavam por casa, à volta das saias da mãe e da avó, só lá para depois das dez da manhã é que tinham autorização para ir até lá fora brincar, e os melhores sítios eram os Largos mais expostos a sul e as Eiras, sobretudo estas por serem os locais mais soalheiros das aldeias de montanha.

As tardes eram a repetição das manhãs, só que com os caminhos e as estradas já mais cheios de gente.

Para além das tarefas de casa e das hortas, para as mulheres era a hora da ida à loja, e do acertar das novidades do dia.

À vinda da loja, na saca de pano, era sobretudo café e açúcar em cones de papel enrolado, e, por vezes, uma lata de quilo de atum – que as sardinhas compradas à caixa aos vendedores que as traziam da beira-mar, já desde Novembro estavam bem conservadas na salgadeira – sendo que as restantes necessidades da casa vinham da feira dos nove e dos vinte e três.

E as noites de Janeiro, isso sim, essas era outra coisa!

Lá na nossa casa de Aguincheira, casa da minha avó materna, era logo após a ceia que o melhor acontecia.

E a ceia, que era o mais tardar às sete horas, era para nós um marco a anunciar que era depois dela que a parte mais linda do dia começava, mas só depois de todas as tarefas concluídas – à ceia, todos à volta da mesa, quase sempre batatas cozidas com bacalhau e couve galega, ou nabiças, … que os nabos amargos daquele tempo só os adultos os conseguiam engolir.

Lá p’rás oito da noite começavam a chegar as visitas habituais daqueles serões imperdíveis para nós, as crianças, eles eram só homens, que as mulheres tinham em casa os filhos para cuidar.

Os mais assíduos eram o Manel Fortunato e o António do Ameal, e, por vezes, o famoso tenor Ernesto Sousa, cujo apelido na aldeia era “Ernesto Capa-gatos”, ou como era mais conhecido em Castelões e na Gandra “O Voz de Londres”.

O Fortunato era um contador de histórias nato, quase sempre à volta das suas atividades de caçador de Monte e de Beira-rio, mas esta última só no Inverno, quando os bandos de Estorninhos – Abertoninhas, como ele dizia – e de outras espécies de aves migrantes pousavam nos lameiros à margem dos rios.

O Ameal, esse era um espertalhaço que nos encantava com todo o tipo de habilidades e truques, desde as cartas de jogar às magias de desaparece e aparece dos objetos mais improváveis, e, … claro, não havia noite em que ele não nos falasse do seu, e já nosso, invicto e sempre leal Futebol Clube do Porto.

E o Voz de Londres, sempre muito culto e comedido até meio do serão, altura em que a cara já rosada do verde tinto lhe fazia soltar os trechos de ópera que mais gostava, como o “Sole mio”.

Mais raras vezes, também por lá aparecia o Milton da Bouça, este mais para sussurrar sobre o ponto de situação da política anti-sistema – como bem lembro a época da campanha eleitoral para a presidência da República, onde ele e os irmãos de minha mãe, o Manuel e o António Sousa, faziam parte da Comissão a favor de Humberto Delgado, contra Américo Tomás, saindo frequentemente após o serão para reuniões à socapa com o Dr. Teixeira.

O Janeiro era assim, duro mas estimulante …, recordo ainda, nos primeiros dias do mês, depois da ceia, um matraquear forte começava a ouvir-se surdo ao longe, cada vez mais forte e audível, era o batimento das tachas de ferro, de proteção anti-desgaste das chancas e dos tamancos, sobre as pedras das calçadas, rapazes e raparigas vinham cantar as Janeiras.

Logo, após um silêncio absoluto de alguns minutos:

Ó senhor da casa, é cantada ou é rezada?

Se nada acontecesse no próximo minuto ouvia-se de novo, agora mais alto

Ó senhor da casa é cantada ou é rezada?

Quando a porta se abria, aquela dezena de caras escuras da noite pareciam iluminar-se, e, como era sempre pedida a cantada, de rezas ninguém precisava logo no início do ano, após umas quadras mais religiosas louvando a Virgem e o Menino, de lá vinha:

Viemos cantar as Janeiras
A desejar bons auspícios Contentamo-nos com alheiras Ou então alguns chouriços. 

Recebido algo, raramente o que pediam, de lá vinha:

A Virgem Maria vos agradece
E o Menino Jesus também
Abençoado de quem padece
De amor fraterno por alguém.

Ah …, e quando a porta não se abria, a cantoria era outra:

Esta casa é como  bréu
Aqui mora algum Judeu

e depois

Esta casa cheira a alho
Aqui mora algum espantalho

e a terminar

Esta casa cheira a unto
Aqui mora algum defunto

estas já com o grupo mais recuado, mais incógnito na escuridão da noite.

O resto do mês de Janeiro decorria sempre em crescendo, cada vez mais o sol a subir no arco do horizonte – à matança dos porcos logo na primeira quinzena, seguia-se uma semana depois, o tradicional almoço de sarrabulho, juntando todos os familiares mais próximos, … ele era os rojões e a carne assada, com arroz e batatinhas do forno a lenha, era o sangue cozido e o fígado frito, tudo bem colorido com os legumes da época, … e bem acompanhado do verde branco e tinto da casa, e o leite creme e a aletria a rematar.

Na mente de todos, sonhos de vida cheia de saúde para os nossos, um olhar sempre em frente era o desafio que se impunha, um caminho difícil mas enfrentado com optimismo, tão prometedor como o esplendoroso luar que neste mês de Janeiro da noite fazia dia.

Abençoado o Janeiro, … que sempre foi criança.