Lenda de Lordelo

Texto adaptado por Margarida Reis
Ilustração de Ana Silva, Jéssica Fernandes e Susana Martins

Lenda de Lordelo

Nevara tanto naquele fim de tarde de Dezembro, que a Ti Malvina do Lamego e a Ti Virgília atrasaram as lides domésticas e só depois se lembraram, quando ouviram as vacas mugir no curral, que ainda tinham de as ordenhar para levar o leite ao posto. E já estava a ficar escuro como breu!

Um vento forte, vindo da serra, transformava de imediato em gelo a chuva leve, quase farrapo, que caía no chão. Aconchegaram-se à lareira, e disseram uma para a outra:

– “A Amorosa e a Preta estão ansiosas que lhes tiremos o leite, mas está tanto frio… Só mais um bocadinho aqui, à lareira.”

E dormitaram, descuidadas, no conforto da quentura que vinha das chamas, que crepitavam e convidavam a um sono justo, após todo o dia de trabalho.

De repente, um trovão forte rebentou e rolou por cima das suas cabeças e elas acordaram, estremunhadas:

“- Credo, São Jerónimo, Santa Bárbra Birge! Ai, as vacas, a ordenha, e o caminho até ao posto do leite nesta noite escura!” …

Mas confortadas porque não estavam sozinhas, tinham-se uma à outra, lá foram tratar de mungir as vacas.

À saída do curral, a Ti Malvina apercebeu-se da presença de um gato preto de olhos coruscantes, fosforescentes, bem estranhos, junto à porta.

Tinha um aspeto ameaçador, naquele refulgir de olhos que pareciam vazar a noite escura, mas, muito racional que era, a Ti Malvina não deu muita atenção ao gato e aos seus inquietantes olhos.

A Ti Virgília, porém, muito medrosa e crente nas histórias que lhe haviam contado em criança, viu logo ali um prenúncio de perigo inexplicável, vindo do Além e tratou de enxotar o gato, que ficou a olhá-las, imóvel, com olhos redondos cheios de ameaças.

Fizeram o caminho delas, passando pelas parcas casas do lugar, fechadas já àquela hora, mas de cujas janelas saía uma luz bruxuleante, alaranjada, sinal de que as famílias, reunidas, descansavam ou faziam a ceia.

O gato, esse, sempre a segui-las, a pouca distância e, quando terminaram as casas da povoação, dando lugar a um caminho escuro e pedregoso pelo meio do Pinhal da Quinta, aproximou-se e pôs-se ao lado da Ti Virgília que, aflita, o ia enxotando constantemente.

O gato preto, porém, quanto mais era enxotado, mais se aproximava, quase se colava às pernas delas.

De repente, saído do meio do pinhal, um ruído seco e sucessivo, e, de imediato, passos rápidos que se aproximavam.

Do escuro, avançando por cima de fetos e silvas, o Ti Galeia berrava, vociferando:

“- Rais parta o Tardo, que hoje anda à solta! Como é que aquelas pinhas iam cair todas, ao mesmo tempo, do pinheiro? Anda aqui coisa do Tardo!”

E, quando se apercebeu das mulheres:

“- Fujam! P’ra onde é que vão a esta hora? Olhem que o Tardo anda por aí! É noite de lobisomens! Ei! Que gato preto é esse?”

Foi então que, de um momento para o outro, ouviram um ronco, seguido de um assobio… Outra e outra vez….Agora, já era de mais!

Desataram os três a correr, em sentido contrário ao que iam, de novo dirigindo-se para o povoado o leite que as mulheres levavam à cabeça, ia-se derramando, saltava fora das bilhas, encharcava-as.

À frente, o Ti Galeia corria a bom correr e elas, carregadas e transidas de medo, não o conseguiam acompanhar. Então a Ti Malvina, a racional, resolveu parar, pousar a bilha, tirar os tamancos e, a chapinar na água gelada, correr no encalço dele.

A Ti Virgília, vendo o exemplo, fez o mesmo e entraram, os três, espavoridos e aos berros, no povoado, perseguidos não por um gato preto mas por três gatos pretos, pois mais dois se lhes tinham juntado!

Ao Ti Galeia perderam o rasto, tão depressa corria, e as duas, agora juntas, não conseguiam, com as mãos trémulas de medo e frio, ma chave no buraco da fechadura da porta de casa.

Nessa altura, repararam que os gatos, hirtoas, nada cansados, estavam parados, atentos, assentes nos seus quartos traseiros, a olhá-las junto à porta para entrarem também.

Aí, estranhamente, Malvina, a racional, mas também a decidida, virou-se para eles e disse, fazendo o sinal da cruz:

– “Credo em Cruz, vai-te embora, Satanás Tarrenego satanás!”- e entraram, lestas, em casa.

No dia seguinte, já com muita lua a clarear a Serra de Lordelo, voltaram ao local. Dos gatos pretos, nem rasto! Das pinhas, nem uma no chão! Olharam para o alto: nem uma no pinheiro! Estranho! Muito estranho!

Porém, na neve que cobria toda a encosta, havia un sítio onde ela derretera e que correspondia ao formato da pessoa mais gorda da terra.

Uhm! Parecia mesmo a forma do corpo da Maria do Marrão, a bêbeda do lugar! Seria?!.. Mas…e os gatos pretos? E as pinhas?