PARTE I
1. Introdução.
Tendo nós visto a luz do dia na pequena aldeia de Viadal, situada nas faldas da Serra da Freita, habituamo-nos, desde petizes, a ouvir as lendas dos seus habitantes e das povoações circunvizinhas.
Há cerca de quatro décadas, cientes de que tudo aquilo se ia perder, começamos por fazer recolhas orais e apontamentos, junto dos moradores mais idosos.
Destes, destacamos: – os irmãos, tios Júlio e José Quintal e a sua sobrinha tia Lina, ainda viva, mas com grandes problemas de saúde. Para tanto, redigimos, em 1986, a Monografia de Viadal (1), apoiados em Inquéritos que lançamos junto dos residentes e em pesquisas da Imprensa Local, nomeadamente o Jornal de Cambra.
Conhecedores de uma data – 1689 – existente no Santuário de Nossa Senhora da Ouvida, quisemos documentarmo-nos sobre o aparecimento do dito culto, em Viadal, validando o que se dizia sobre Nossa Senhora e a fundação do lugar.
Todos os informantes eram unânimes de que os primeiros moradores se teriam instalado no Lugar de Baixo, mais propriamente onde passa a atual estrada e no local da casa do tio Floriano Brandão, por aí terem aparecido restos de fogueiras e cerâmica.
Já nas redondezas, foram também encontrados vestígios da ocupação humana em Beijós (2) e no Choilinho, junto a Covas. Deste último nos ocuparemos, mais abaixo.
Graças a importante trabalho, de Anita Pereira Tavares (3), podemos referir, com fiabilidade, que Viadal já tinha, pelo menos, três moradores em 1284, e mais alguns em Covas.
2. Viadal ao tempo do rei D. Dinis, ano de 1284 d.c.
A maioria das freguesias de Cambra já existia em 1284 com a atual configuração, nomeadamente a de Cepelos a que Viadal, desde sempre, pertence.
O mesmo pode dizer-se dos seus lugares, com exceção da Póvoa dos Chões. Sabemo-lo pelas diferentes Inquirições ordenadas pelos reis da 1ª dinastia e documentação dos Cartórios Notariais dos Mosteiros e Conventos, com destaque para aqueles localizados em redor (4) de Cambra, nomeadamente Arouca, Grijó, Pedroso e Cucujães.
É precisamente pela Inquirição, mandada fazer, em 1284, pelo rei Lavrador, que ficamos a saber que Viadal, Tabaçó, Vilar, Gatão, Felgueira, Cabrum, e Paço do Mato já existiam então.
Mais nos diz o mencionado escrito que havia moradores em Carvalhal Benfeito, junto a Tabaçó, e Covas em Viadal.
Estes últimos dois sítios não são localizados pela historiadora. Julgamos, contudo, saber onde ficam, nomeadamente Covas.
Com efeito, há vários anos que o demandamos, embora ali bem perto, no Choilinho. Vejamos.
3. A expedição a Covas e ao Choilinho, ano de 2002.
Duas questões se nos têm levantado com a existência deste povoado, que terá tido, supomos, poucos moradores:
a) – A lenda da sua existência que nos diz:
“No Choilinho viviam moradores que adoeceram. Os de Viadal não quiseram tomar conta deles. Já os de Paço do Mato tomaram essa iniciativa.
Por isso, aquando da partilha do monte, a parte que lhes pertencia ficou para os daquele lugar. Isto é, desde a Tapada até à Urtieira, junto ao caminho que vai para a Póvoa”. (recolha em Viadal em 2002).
b) O facto do Choilinho ter pertencido a Paço do Mato, freguesia de Rôge, apesar de se localizar na margem esquerda do Caima. Baseados naquele relato, preparamos, em 2002, uma “expedição ao Choilinho”, acompanhados pela tia Lina, boa conhecedora do local e pelo Beto – Alberto Brandão – que então vivia em Viadal.
Talvez o título mais adequado fosse o de “sertanejos do Riba Caima”, mas foi aquele o que prevaleceu, pois é assim que temos arquivados os apontamentos e fotografias do local.
Devidamente apetrechados de foice, enxada, caderno, caneta e máquina fotográfica, capitaneados pela tia Lina, pusemo-nos em marcha. Saídos de Viadal chegamos ao vale das Regadas (5), no caminho antigo para Paço de Mato e Póvoa dos Chões.
Aí, viramos à esquerda e entramos na quelha (6), até alcançarmos as leiras das Cardosas, então com eucaliptos. É aqui, abaixo destas, que se encontra o provável sítio onde terão vivido os ditos moradores.
As supostas ruínas estavam cobertas de musgo e matagal, num declive e junto a um penedo. Cortados alguns arbustos, verificamos haver vestígios de construções ou muros no local, já que as pedras parece terem sido trabalhadas.
As paredes/vedações das cavadas são-lhe perpendiculares. Em frente, Paço do Mato bem visível. Mais abaixo, e à esquerda das prováveis construções, vimos uma presa com um engenho, onde era possível os moradores abastecerem-se de água para as suas necessidades diárias e rega.
A propriedade era, em 2002, pertença de um habitante de Paço de Mato. Tiramos então algumas fotos que aqui deixamos para memória futura.
4. Será o Choilinho de 2002 a localidade de Covas de 1284?
Pelo conhecimento que temos do local estamos em crer que sim. Com efeito, Covas, sítio em que o tio Diamantino Tavares (7), nosso vizinho, tinha uma propriedade, de que tanto se orgulhava, localiza-se ali muito perto.
Como desconhecemos existir no perímetro florestal de Viadal outro local com esse nome, inclinamo-nos ser o Choilinho as Covas das Inquirições de 1284.
Só uma limpeza do terreno e o estudo do local, por pessoas versadas no assunto, podem validar esta premissa, mas que a coincidência é grande, lá isso é. 5.
A que freguesia pertence o Choilinho? Como dito, e apesar de se situar do lado de cá do rio Caima, não só o Choilinho como outras propriedades até à Urtieira pertencem na sua maioria ou pertenciam a moradores de Paço de Mato.
Olhando os canos para transporte de água (8) que atravessam o rio Caima não deixam dúvidas donde são os seus donos, ou seja, de Paço do Mato, já que é para lá que o precioso líquido escorre. Esta questão é, contudo, já muito remota.
Há vários anos que a tentamos desvendar, mas sem êxito. Sendo os cursos de água pontos privilegiados de demarcação de terras ou países, sempre nos fez alguma confusão como o lugar da Póvoa dos Chões, a nascente e na margem direita do rio, pertence a Cepelos e Santa Cruz e Casal de Arão, a poente, margem esquerda, fazem parte de Roge.
Se estas não nos oferecem grandes dúvidas, por serem em terreno fértil, já a Póvoa é mais intrigante.
6. A Póvoa dos Chões.
Também aqui a lenda diz-nos que:
“O lugar da Póvoa era da freguesia de Roge. O padre de Cepelos deu uma quarta de milho ao seu pároco e ficou com ele para Cepelos“. (in, apontamento, junto à Monografia).
Quando éramos miúdo, também ouvíamos dizer que tinha sido comprado por uma tigela de papas; isto para ilustrar que teria pouco valor económico, apesar de ser terra de boa gente e muito amiga.
Certo é que já nos inícios do século XVII a povoação pertencia a Cepelos, conforme se infere da leitura dos Registos Paroquiais da freguesia, em cujos livros se encontram registados os seus moradores. Já os casamentos não conheciam fronteiras.
Os da Póvoa casavam preferencialmente na Castanheira ou em Paço do Mato. Alguns em Viadal, Tabaçó, e outras terras do Alto Caima.
Em 1931, Carlos Alberto Costa, do Jornal de Cambra, acompanhado de Francisco Marques de Carvalheda, a caminho da Misarela, passou pela povoação, tendo sido seu anfitrião Custódio Peixoto, referiu o seguinte: “lugar antigo de gente laboriosa, formando os seus lindos campos canteiros de verdura em graciosa disposição“. (in, JC nº 30 de 5/2/1932).
A atual ponte (9), sobre o rio Caima, a ligar a Viadal e à sede de freguesia foi construída entre 1949/1950.
Temos também o testemunho, de um habitante idoso do lugar que, em 2012, nos disse: – “Antigamente, era uma ponte em madeira, feita com tábuas atravessadas, passavam lá vacas e tudo”.
7. A demarcação das freguesias de Roge e Cepelos.
Sabemos, pelos nossos apontamentos, que já D. João V, em 1716, incumbiu Belchior Teixeira Louseiro, pároco de Roge, de proceder à delimitação da freguesia (10).
Desconhecemos quais as razões, mas uma delas bem poderia ser, já então, as terras da margem esquerda do Caima, junto a Viadal, especulamos.
Certo é que em reunião da Câmara, ano de 1911, foi apreciado “um ofício da Comissão Paroquial de Cepelos protestando contra o pedido de aforamento do monte baldio, sito na margem esquerda do rio Caima, feito pelos moradores de Paço-do-Mato, da freguesia de Roge, pois que tal monte pertence à freguesia de Cepelos”.
Foi decidido esperar “até que se averigue se é verdadeiro o alegado” (11). Como se induz, os de Paço do Mato venceram a contenda. Não deve ser difícil averiguar, nos arquivos municipais, o que então foi decidido e para quem ficaram os terrenos.
Parece que a ponte, a ligar Paço de Mato a Viadal, terá sido construída por essa altura. O Mestre chamar-se-ia de Pisco. As descrições existentes sobre a mesma referem-na como sendo medieval.
Verdade é que, em 1284, Covas aparece descrita, juntamente com Viadal e Tabaçó, do seguinte modo:
“Item da aldea de Tavoazoo e de Carvalha Bemfeita. Estas son as testemuyas con’as outras de suso dictas: Joham Periz, Domingos Periz de Tavoazoo, Pero Joanes de Carvalha Benfeita disseron que na aldea de Tavoazoo, e en Covas, e en Vidal, e en Carvalha Benfeita ha y XVIIII casaes, e destes son dous de Pedr’Eannes de Gaton, e son dous de Pedroso e deu-lhos Moniom Gomez, e huum casal Rio Tinto deu-lho Martim Madeira, e outro casal ha y Avis e deu-lho Moor Rodriguiz, e outro casal est de Pero Veegas, e outro casal de netas de Moniom Porro, e huum casal en Covas de Fernam Oannes, e en Vidal est huum de Martim Veegas, e outro est de Martim Madeira, e outro est de Rodrigo Afonsso de Gaton, e ha en Carvalhal Benfeito Fernando Afonsso dous casaes, e huum casal Pero Veegas hirmão do juiz, e outro casal ha y a igreja de Rogi, e veem todos de filhos d’algo e dan voz e coomha e omezio e gardan a portagem dos de fora.” (12)
8. Carvalhal Benfeito, outro enigma.
Munidos desta informação tentamos saber, junto de atuais moradores da Tabaçó e Viadal, se há alguma localidade, no espaço das suas áreas territoriais, com este nome. Na verdade, há.
O Carvalhal atual fica contíguo ao lugar de Baixo de Tabaçó, como as fotos recentes o demonstram.
Trocadas impressões com um habitante local, nascido em 1943, disse-nos:
– “Tenho lá umas leiras. Por vezes aparecem lá carvões. Se calhar viviam lá ferreiros. Fica por detrás da casa da tia Maria da Póvoa”.
Ora, quando éramos rapaz e frequentávamos a escola primária (13) em Tabaçó – lugar de Cima – eram bem visíveis dois núcleos urbanos distintos, com as pequenas casas, em granito, todas muito juntas.
Diz-nos ainda a lenda, sem documentação que o comprove, que o lugar de Tabaçó é mais antigo do que o de Viadal.
A razão prende-se com o desvio, para as leiras de Tabaçó, da água do pequeno córrego que nasce próximo do S. Tiago da Felgueira e escorre para as bandas de Viadal até entroncar, lá mais abaixo, na corga do Barroco.
Tal só foi possível, pensa-se, por ainda não existirem moradores em Viadal. A derivação da água processa-se no sítio do Espinheiro, abaixo da estrada que liga à antiga Escola de Tabaçó.
Ainda são visíveis as presas, o rego e, nos dias de hoje, muitos canos, todos em direção de Tabaçó de Cima.
Tendo como base o acima descrito tudo indica que o Carvalhal Benfeito de 1284, corresponda ao núcleo antigo do Lugar de Baixo, agora incluído na povoação de Tabaçó. (continua)
Queluz, Abril de 2020.
Manuel de Almeida
Fotos
. Choilinho. Ano de 2002.
. Carvalhal em Tabaçó. Ano de 2020
ANOTAÇÕES
(1) – Publicada parcialmente no jornal da Paróquia de Cepelos Ecos do Povo. A disponibilizar, oportunamente, na INTERNET em PDF.
Sobre o culto a Nossa Senhora da Ouvida, ver a V.C. nº 628 de 1 de Agosto de 1997 e sgts. e ADCRA.Viadal.
(2) – in, Monografia de Viadal, pág. 44. Sobre Beijós, ver também o nosso conto “O Castanheiro dos Ovos”, disponível no blogue RIBACAIMA.
(3) – TAVARES, Anita Pereira – A Medieva Terra de Cambra: Território e Sociedade. Ano: 2013.
(4) – Já em tempos, permitimo-nos especular sobre a não existência de um Convento ou Mosteiro em Cambra. Tratamos desse assunto na Voz de Cambra, nº 549, de 15 de Março de 1994 e sgts.
Indicamos, baseados na lenda, que terá havido um, dedicado a Santa Marinha, em Vilar.
(5) – Sobre este local, vide o nosso conto serrano: – “O Tardo em Tabaçó”.
(6) – Paralelamente a esta quelha, mais acima, havia um rego, já em desuso quando éramos criança. Partindo da corga de Beijós, passava pela Feiteira, Regadas e vinha até à Defaifa.
(7) – Ainda hoje estamos a vê-lo, a ir para Covas, com o Jornal de Cambra debaixo do braço, de quem era correspondente em Viadal e de que muito se orgulhava.
A ele nos referimos abundantemente na Monografia de Viadal e noutros escritos sobre a aldeia.
Diamantino Tavares nasceu a 27 Janeiro de 1906 e faleceu a 24 de Julho de 1981. Esteve alguns anos no Brasil.
(8) – Atualmente, ano de 2020, não há distribuição de água, nem saneamento básico nas aldeias do Riba Caima. Só visto, contado ninguém acredita.
(9) – (in, V.C. nº 638 de 15 Janeiro de 1998. O artigo é de António Tavares de Matos). Ver também o nosso conto – “O Castanheiro dos Ovos”, in RIBACAIMA.
Nos finais década de quarenta, do século XX, deu-se, na Póvoa, um acontecimento trágico no decorrer de um “serão”.
No seguimento de uma contenda, um rapaz, chamado Abílio, foi morto a tiro por um dos Laceiras de Vilar.
Quando éramos miúdos, o assunto era ainda muito comentado.
(10) – in, Monografia de Vale de Cambra, pág. 199.
(11) – in, nº 173 de 28/5/1911 do Jornal de Cambra e Monografia de Viadal.
(12) –Tavares, Anita Pereira – A Medieva Terra de Cambra: Território e Sociedade. Universidade de Coimbra. Volume II, pág. 82. Ano de 2013.
(13) – Artigo da nossa autoria, com o título: “A Escola Primária de Tabaçó”. In, a VC de Novembro e Dezembro de 2017.