TRADIÇÕES E LENDAS DO LUGAR DE VIADAL.
LENDAS RELACIONADAS COM O POETA BOCAGE.
(publicado na VC de 25 de Fevereiro de 2007)
Apesar do isolamento, em anos passados, da aldeia de Viadal, a verdade é que a informação, relativa a personagens com relevo histórico, chegava à localidade.
Tanto assim é que ainda há vestígios de canções alusivas à prisão de Gungunhana, célebre guerreiro moçambicano, detido ainda ao tempo da monarquia, do cantador Marques Sardinha(1) e dos poetas Malhão e BOCAGE. É deste último que trataremos a seguir.
BIOGRAFIA DE BOCAGE
Como se sabe BOCAGE, de seu nome completo Manuel Maria Barbosa du Bocage(2), nasceu em Setúbal em 1765, filho de pai português e de mãe com origem francesa. A sua família era abastada.
Muito novo, porém, as vicissitudes da vida haviam de o marcar. Tinha apenas dez anos quando sua mãe morreu. Aos dezasseis assenta praça na Guarnição de Setúbal e dois anos mais tarde na Escola da Armada, em Lisboa. Atingida a patente de Guarda de Marinha embarca com destino à Índia, com passagem pelo Rio de Janeiro no Brasil. Pelo oriente deambulou alguns anos.
Regressado a Lisboa e devido à sua excelente formação académica, primoroso jeito para versejar e grande sucesso junto das mulheres, independentemente da classe social, cedo viu-se odiado pelos outros poetas da época ligados à Nova Arcádia, nomeadamente Curvo Semedo e Agostinho Macedo.
Sarcástico e mordaz para com a ordem estabelecida, simpatizante da Revolução Francesa foi ainda perseguido pelos esbirros do poderoso Intendente Pina Manique, que promoveu a sua prisão no Limoeiro, aonde padeceu grandes sofrimentos.
Teve ainda, ao que parece, grande desgosto de amor. Uma sua pretendente, Gertrudes, familiar do Governador do Outão veio a casar, para seu grande desgosto, com o seu irmão mais velho.
Para além da qualidade dos versos, muitas vezes pungentes e cheios de sátira, aliados a uma vida boémia e algo dissoluta nos bordéis de Lisboa, fizeram dele uma lenda, que perdura até aos dias de hoje.
Vejamos o que circulava a seu respeito, aí pelos anos oitenta do século passado, em Viadal.
1. A MORTE, EM SETÚBAL, DO CAVALO BRANCO DO REI.
Conto serrano.
(publicado na VC de 10 de Março de 2007)
1.1. A doença do cavalo branco.
O rei tinha, nas suas propriedades de Setúbal, um cavalo branco de que gostava muito.
Certo dia a cavalgadura adoeceu. O monarca pressentindo que o animal ia morrer fez constar que se este falecesse, para compensar tão grande desgosto, mandaria matar, quem trouxesse à sua excelsa presença tão confrangedora notícia.
Passados poucos dias o animal finou-se, isto é, morreu. O pessoal da quinta e as autoridades locais de Setúbal entraram em pânico. Não se encontrava, naquela comarca, voluntário que se dispusesse a deslocar a Lisboa e enfrentar o soberano. O fim da sua existência estava, previamente, anunciado.
1.2. O apelo do Governador do Outão
Saído da sua residência no Outão, o governador local reuniu-se, no largo principal da vila, com “as forças vivas sadinas” e respectivo povoléu, a fim de arranjar solução para o problema.
Contudo, ninguém estava disposto a morrer, mesmo recebendo um elevado prémio em dinheiro e a família algumas honrarias.
1.3. Bocage, o salvador
É por esta altura que surge, para grande alívio de todos, BOCAGE que diz: – “EU, LEVO A NOTÍCIA AO REI!”.
Os presentes rejubilaram de alegria, embora temendo pela vida do conterrâneo Bocage. Por outro lado, sabiam-no esperto e dali, na viagem até Lisboa, alguma coisa ele havia de engendrar para safar a sua cabeça do cadafalso.
Tomada a decisão, alguém preparou um farnel para o poeta. Este, vestido com o seu jibão e chapéu de três bicos ou tricórnio – à francesa -, toma a estrada real que o levará até Aldeia Galega do Ribatejo, hoje moderno Montijo(3) e aonde haveriam de vir, anos mais tarde, a mourejar muitos cambrenses(4).
Aí, apanha uma “falua” que o deixou, horas depois, do outro lado do Tejo. Dali ao Paço Real já era só um pulo.
1.4. Em Lisboa, no Palácio do Rei
Lá chegado, pôs-se a dar voltas consecutivas em redor do Palácio, sem dizer o que quer que fosse, apesar de interpelado pelos respectivos guardas.
Para além da vestimenta, já referida, tinha mesmo pendurado num cajado, colocado sobre o seu ombro esquerdo, o saco da merenda. Mais parecia um pedinte que um ilustre e iluminado poeta.
Assomado à janela do Palácio, o rei sente que é seu dever interrogar o intruso. Desce então a imponente escadaria que dava acesso ao terreiro e pergunta ao forasteiro:
– Que fazes aqui, em tão real propriedade? Donde és?
– Ando às voltas – diz Bocage – e sou de Setúbal!
– Então sabes notícias do meu cavalo branco? – inquiriu o monarca.
– Saiba Vossa Majestade – respondeu o poeta – que:
“O seu cavalo branco,
Está gordo e conservado.
As moscas entram-lhe pela boca,
E saem-lhe pelo rabo”.
– Então morreu! – exclamou o rei.
– É verdade – retorquiu Bocage -, mas saiba que foi V. Majestade que o disse e não eu.
Conclusão: – A ter de haver morte era a do rei e não a do mensageiro.
2. O BANQUETE, A RAINHA E O PEIDO.
– Ver publicação, à parte, neste Blog, com o título: – BOCAGE, EM QUELUZ.
(Idem, VC de 10 de Abril de 2007)
3. QUADRA A UMA BONITA MENINA.
(publicado na VC de 25 de Abril de 2007)
Naquele tempo Alfama, em Lisboa, fervilhava de actividade e de gente. Saneamento, nas ruas estreitas do bairro, para escoamento de águas e dejectos, era coisa desconhecida dos alfacinhas.
Sempre que uma moradora necessitava de esvaziar as suas selhas, gritava: – “Água vai!”. E ia mesmo suja e gordurenta para as pedras das calçadas e vielas. Quem passava e não se arrumava levava com a sujidade.
Certo dia, o nosso BOCAGE, ia a sair de uma das tabernas e não ouviu o usual pregão de “água vai”; talvez porque já estivesse com algum copito a mais de vinho ou genebra ou porque outros afazeres o atormentavam.
Certo é que levou uma banhada de água suja, como há muitos anos não lhe acontecia, desde que tinha deixado Setúbal, aonde a prática era também corrente.
Tentando agradecer o feito, olha para a varanda do primeiro andar. Só que, para surpresa sua, não era a esperada matrona que lá estava, mas uma bela e jovem mulher que, envergonhada, escondia o balde.
Bocage não perde tempo e faz-lhe, logo ali, o seguinte verso, que ficou para a história:
“Ó!, menina do entoucado,
Já que teve a mão tão certa.
Desça a escada,
E venha buscar a oferta”.
4. OUTRA QUADRA, DITA EM VILA FRANCA DE XIRA.
Na mesma época, o nosso BOCAGE deambulava, preocupado, à beira Tejo em Vila Franca de Xira, às portas da Lezíria do Ribatejo.
A certa altura, um campino intercepta o forasteiro e, logo ali, faz-lhe uma quantidade de perguntas, nomeadamente:
– Donde vem? Para onde vai? Como se chama?, entre outras.
– O poeta, responde do seguinte modo e sempre em verso:
“Venho de Lisboa,
E vou para Santarém.
Chamo-me Manuel,
E não vivo com ninguém”.(5)
Massamá, Maio de 2006
Manuel de Almeida
APONTAMENTOS
(1) – Ver a este propósito, entre outros, o nosso trabalho publicado na Voz de Cambra nº 709 do ano de 2001, sobre a Romaria de Nossa Senhora da Saúde.
(2) – Vide foto do poeta.
(3) – Ver foto do Cais do Montijo. Ano de 1995. A apodrecer lá está um batelão.
(4) – Já aí pelo séc. XVIII, os cambrenses deslocavam-se para estas bandas do Ribatejo, conforme se pode inferir pela consulta aos livros dos Registos Paroquiais – óbitos – da Freguesia de Cepelos. Nesse livro, aparecem anotadas as mortes “em Lisboa” e nas “partes do ribatejo” de alguns cepelenses.
(5) – Esta resposta ilustra, parece-nos, a vida mundana de Bocage.