Tinha um nome muito bonito que não vamos revelar
Contentemo-nos em chamar-lhe Linda que também não é
feio
Tinha um ar luminoso os olhos cheios de sol
Os cabelos douravam como uma auréola o ar límpido do azul
do céu à volta da sua cabeça
Abria-se em nós como romã sumarenta
Uma onda transparente de um qualquer mar de inesperado
encanto embalava o olhar de quem dela não conseguia
desviá-lo
Tinha quarenta anos e um provável cancro do colo do útero
mas eu não sabia
Soube-o mais tarde quando beijei o seu rosto luminoso e
bebi sofregamente o sol dos seus olhos
Quando a sua pele era a minha e eu sentia entrelaçados nos
meus os dedos da felicidade
Quando o sangue borbulhou no peito e o coração estremeceu
com medo de fraquejar
Quando aquela hora de uma tarde quente de Agosto se
incendiou e eu não pude imolar-me nas chamas que ardiam
dentro de mim impedido pelo suave cruzar de um dedo
sobre os meus lábios
Foi nas Portas de Santo Antão
Muito tempo antes um denso nevoeiro cobrira-me a alma
como sangue que corre das feridas do tempo
Do tempo e do medo do medo da guerra da dor de uma mãe e
do choro convulso de um pai e da saudade arrancada à vida
e à liberdade
Ela havia-me prometido este beijo no meu regresso deixasse
eu amadurecer a recordação e não tivesse medo do tempo e
do silêncio pois o silêncio nada mais é do que a voz do tempo
quando passa
Com estas palavras nos olhos vi-a desaparecer lentamente
no cais à medida que o Uíge se enlaçava nos braços do Tejo
Com o tempo as feridas foram cicatrizando e outras foram
abrindo pelas mãos dessa pátria lamacenta empenhada em
profanar todos os meus sacrários
Como não havia qualquer deus a receber as honras dos
homens dei-me a mim mesmo a difícil tarefa de ser eu o
senhor e dono do meu invencível desígnio
E o tempo foi passando entre o sonho o gemido e o silêncio
os vários sons que faz o tempo quando passa até se perder
por momentos nas águas fundas do Cacheu
E na voz do silêncio Linda era ainda uma flor que crescia
dentro de mim regada com as pequenas lágrimas e alegrias
do nascer do dia e do cair da noite
Linda era italiana e divorciada
Tinha um filho de oito anos que gostou de mim
Filha de um diplomata fascista que vivia em Madrid nunca
se abriu sobre assuntos políticos
Sei que era locutora
A mim pouco me importava o que fosse
Era muito terna e bondosa e isso chegava
Eu só queria o sol dos seus olhos
E foi com o sol dos seus olhos dentro da escuridão dos meus
que eu corri para o prometido beijo do meu regresso
Não foi um beijo foram muitos beijos tantos quantos pôde
conter o tempo que vivemos abraçados até o seu dedo cruzar
os meus lábios
Disse-me um dia que a morte viera visitá-la mas fechara-lhe
a porta na cara e sobreviveu
Com alguma luz à volta do seu lindo rosto e ainda com
algumas gotas de sol salpicando os olhos molhados
confessou-me que eu continuava a ser para ela uma boa
recordação
Se fosse mais nova nunca mais cruzaria o dedo sobre os
meus lábios
Uma remota nuvem cobrindo a memória foi anunciando
no tempo que o pássaro de fogo se fez ao caminho dos céus
infindos onde o silêncio voa para não mais ser grito
Tinha um nome muito bonito e inconfundível
Terminava em Nevrly
Ao fim de trinta anos a lista telefónica de um qualquer hotel
teve a amabilidade ou a crueldade de mo oferecer de mão
beijada
Do outro lado da linha uma voz doce da idade emoldurada
de longes e ausências após algum compreensível silêncio
fez-se ouvir em forma de sussurro
Sim é uma boa recordação