No Moinho de Tabaçó

No Moinho de Tabaçó
Manuel de Almeida

Conto Serrano

e/ou

AS TIAS ROSA E JOAQUINA E A POMBA MENSAGEIRA
A Infância

Desde crianças que as tias Rosa e Joaquina eram muito amigas. Pudera, percorreram a infância e adolescência sempre juntas que juventude, pode dizer-se, quase não tiveram.

Como os irmãos e irmãs, devido aos casamentos, foram saindo de casa, calhou a elas tomarem conta das lides domésticas, dos muitos sobrinhos, a maioria deles seus afilhados e dos próprios pais.

A Rosa no Seixo Branco

De início ainda tiveram pretendes, a Rosa, a mais arrebitada, esteve mesmo prometida a um rapaz da Castanheira, moço que conhecia bem da Freita onde costumavam apascentar os rebanhos, lá por Beijós e Fonte Férrea.

Recordava, com alguma saudade, os tempos em que se encontravam, desde crianças, no Seixo Branco(1) e aí, à sombra do pedregulho, jogavam ao neto e mais tarde ele lhe fez a promessa de a levar para o Brasil, logo que por lá arranjasse os cabedais necessários.

Só que ele partiu, em idade de ir a sortes, direito à cidade de Santos, no outro lado do Atlântico e não mais regressou, nem lhe deu notícias.

Constava que vivia lá amigado(2) com uma mulata com quem tinha um rancho de filhos, o que não era de estranhar; dado que também lhe tinha feito muitas promessas, lá no meio do monte, mas ela não foi na cantiga e disso lembrava-se muito bem.

A Joaquina no S. Tiago da Felgueira

A história da Joaquina também não era muito diferente. O seu caso passou-se com um rapazola da Felgueira, com quem mantinha amizade e conhecimento, desde petiza, igualmente no monte, desta feita junto à capelinha do S. Tiago, nas proximidades do lugar.

Agora, homem feito, era todo promessas e falinhas mansas, tendo mesmo chegado uma vez ou outra a acompanhá-la até à Candosa onde se deliciaram com a água fresquinha da fonte.

Só que aí, sabedor do caso, o pai pô-la de sobreaviso. Da primeira vez chamou-lhe à atenção, pois ele já tinha um filho lá para os lados das aldeias do Gralheiro, obtido pelos mesmos métodos.

Cuidar do sustento do garoto é que nada. Nem mesmo uma broa ele mandava ao menino e respectiva mãe. Como o criava, provavelmente a leite massado, só Deus o sabia.

Como ela não ligou muito ao caso, da segunda vez ouviu o mesmo “sermão” e sentiu o pai “chegar-lhe a roupa ao pêlo”(3), com uma vergasta verde, método persuasivo muito usado naquela época.

Serviu-lhe de exemplo e a partir daí levava companhia, mais das vezes a Rosa, sempre que tinha de ir apanhar molhos de carquejas ou lenha, lá para aquelas bandas.

De início ainda ficou sentida com a atitude do pai, mas com o passar do tempo e reflectindo sobre o assunto, acabou por perdoar-lhe.

A este propósito, vinha-lhe sempre à ideia, aquele dia de festa a S. Tiago(4) em que quase tinha ido no palavreado dele.

Na verdade, finda a procissão e enquanto se fazia um bailarico, ele pegou-lhe pela mão e, a propósito de ir tirar o “haver e encanto” do Cabeço dos Carros(5), foram de converseta pela “Estrada dos Caramuleiros”, até junto do grande calhau.

Era só lábia o ladrão – cogitava ela agora – pois chegou a dizer-lhe que tinha muito quem o quisesse nos outros lugares, sobretudo lá para as terras quentes de Arões.

Valeu ter aparecido, lá em cima na Cumieira, um almocreve com as suas azémolas carregadas de mercadorias e que se dirigia para Albergaria das Cabras ou Cabreiros.

Ainda dançaram algumas vezes, nessa tarde, mas a partir daí ela afastou-se e ele lá ficou por Paraduça, mas amigado que casar, de papel passado, não era do seu feitio.

Na Senhora da Ouvida

Se em crianças eram devotas por obrigação, já que lá em casa ninguém se ia deitar sem rezar o terço, seguido de uma oração extra a Nossa Senhora da Ouvida, a sua padroeira, agora eram-no por convicção.

Não só zelavam a ermida para estar apresentável nos dias de missa, como estavam sempre disponíveis para ajudar os mordomos nas festas: – A da Senhora da Ouvida na Pascoela(6), ao domingo, e a do S. Miguel a 29 de Setembro, dia santo.

Só as preocupava era o estado do tempo, pois havia anos em que, devido à invernia, a procissão só se fazia em volta da capela. Porém, do que elas gostavam mesmo era de subir até ao cruzeiro da Ranhada, em dia de sol radioso, e ver os andores quase chegar lá ao pé de Tabaçó.

Por isso, era com grande contentamento que recordavam aqueles dias festivos em que, todas aperaltadas, vagueavam pelo pequeno arraial e viam de perto os moços de outros lugares, nomeadamente os de Viadal, que conheciam bem e, haja sinceridade, eram janotas e acima de tudo respeitadores.

A promessa

Por todas as razões já aduzidas e muitas outras que se lhe seguiram, a verdade é que o tempo foi passando e a idade chegando, quase sem terem dado por isso.

Também chegou a altura de fazerem balanço à vida, pois já tinham visto partir para o cemitério em Cepelos muitos parentes, vizinhos e, vá-se lá saber porquê, até muitos “anjinhos”.(7)

Como referido, o mistério da morte fazia-as meditar. Por isso, certo dia, gracejando, combinaram que a primeira a morrer ficava com a obrigação de cá voltar para contar como era aquilo, lá em cima, no céu.

Acontece que, passados alguns anos, uma delas, a tia Joaquina, faleceu. E se em vida tinha sido mulher de palavra, não era agora, depois de morta, que ia comportar-se de outra maneira.

Anos depois no moinho do rio Caima

Embora sem a companhia da sua saudosa amiga, a tia Rosa teve que continuar a lutar pela sobrevivência e essa rotina incluía ter que ir, lá abaixo ao Caima, moer milho no moinho da aldeia e de que já conhecemos a localização (de outra aventura, com as mesmas aldeãs).

Desta vez, por ser verão, o tempo ia quente e seco e os silvados estavam carregados de amoras pretinhas, grandes e muito saborosas.

Daí que, enquanto aguardava que a azenha terminasse a sua tarefa, a camponesa, feita moleira, saiu e foi refrescar os pés na água límpida do Caima e apanhar os frutos silvestres. Encheu uma abada.

A pomba com a mensagem

Sentada numa pedra, no meio do riacho, a tia Rosa, agora sozinha, ia saboreando os deliciosos frutos, até que, espantada, vê uma pomba branca a sobrevoar, em círculos, a sua cabeça.

Curiosa, pergunta-lhe:
O que estás a fazer? O que queres?

– Ao que a ave respondeu:

Do que comi, nada vi.
O que dei, lá o achei.
Olha o rato na farinha

Dito isto, a pomba desapareceu, em voo rasante, rio abaixo; vá-se lá saber para onde.

Conclusão:
– A amiga, a tia Joaquina, cumpriu a promessa. Voltou, embora em forma de ave.

NOTAS
(1) – Sobre este pedregulho, em tempos dinamitado, ver a Voz de Cambra de Junho a Outubro de 2008. Uma foto, aí publicada, da nossa autoria mostra, lá ao fundo, o local onde existiu o dito Seixo.

(2) – Termo usado para quem vivia maritalmente, mas sem ser casado. Hoje impropriamente dito de “namorado”.

(3) – O mesmo que sova. Expressão então muito usada para levar alguém a executar uma determinada tarefa ou rumo a seguir. Exemplo: Se não fazes… “chego-te a roupa ao pêlo” ou “levas um puxão de orelhas”.

(4) – Esta ermida ou pequeno oratório já existia em 1575, conforme referido por nós na Voz de Cambra nº/s 553 e 554 de Maio de 1994. Provavelmente passariam por aqui, com alguma regularidade, peregrinos a caminho de S. Tiago de Compostela, daí a designação do templo.

(5) – Pedregulho situado no cruzamento do caminho que vai de Viadal para Carvalhal do Chão, com a “Estrada dos Caramuleiros”, e onde existe um “encanto” com enormes riquezas. O dito local também é conhecido por “Vale dos Galegos”.

No site da ADCRA Viadal consta a descrição deste tesouro, baseado em trabalho – Monografia de Viadal – da nossa autoria e a disponibilizar oportunamente na INTERNET.

(6) – Sobre este culto ver a Voz de Cambra nº 628 e sgts, do ano de 1997.

(7) – Nome dado às crianças que morriam prematuramente. Se ainda não fossem baptizadas eram chamadas de “custódios”.

(A ponte terá sido construída na segunda ou terceira década do século XX e o mestre pedreiro chamar-se-ia de Pisco).

NOTA GERAL: – Matéria publicada na Voz de Cambra, de Novembro de 2012.