por M. Romero Vila
O CORTEJO das OFERTEIRAS, ou AS OFERTEIRAS, existiu na região de Vale de Cambra, especialmente na freguesia de S. Pedro de Castelões.
Desconhece-se a era, ou data, em que começou tão regional costume de homenagear os mortos e de conservar a sua memória.
Costume imemorial, acentuou o Prior de S. Pedro de Castelões, Padre João Martins das Neves, e que mergulha nos primórdios da existência humana, desde que o homem começou a dar morada digna e respeitosa aos seus defuntos e a ter consciência do seu destino eterno.
As Oferteiras dispõem-se, à frente dos funerais, em fila indiana, precedidas do rapaz da campainha.
Em número ilimitado, dependendo somente do consentimento da família e da possibilidade de conseguir, no Lugar ou na Freguesia, donzelas disponíveis para isso.
E assim se chama a este desfile das raparigas nos funerais, O Cortejo das Oferteiras.
Não há na escolha, e no convite, qualquer exigência social ou económica, apenas serem solteiras, reputadas de boa fama e com a idade máxima de 25 anos.
Até há pouco tempo existia o costume de o número ser ímpar (pernão, como diz o povo) – costume que por se julgar eivado de superstição, se procurou evitar.
Vestidas rigorosamente de preto, desde os sapatos ao lenço da cabeça, com saia, blusa, xaile fino (tipo varina), manta ou véu preto.
O pequeno cesto de varas redondas, coberto inteiramente pela toalha de linho branco, pousado na rodilha branca sobre a cabeça, sobressai perfeitamente em todo o conjunto fúnebre, dando um tom de pura saudade e bela homenagem aos mortos que vão a sepultar.
Esta toalha existia, outrora, em todas as casas, servindo primeiramente para os baptizados das famílias.
O milho que leva o cesto é oferecido pelas pessoas amigas, vizinhos e parentes e, no seu conjunto deve dar um alqueire, em enterro de adulto, e meio alqueire, em enterro de anjinho.
Primitivamente, eram duas boroas de milho que se destinavam aos pobres.
A renda da toalha é disposta de uma maneira especial, cobrindo toda a boca do cesto que leva o milho e fica pendente das abas, não permitindo ver-se qualquer parte das varas redondas de que se compõe o cesto.
Esta oferta, apresentada de uma maneira airosa e cheia de simbolismo, na pungente hora de luto e dor que a todos impressiona, é uma nota de alva candura e significativa manifestação de condolência amiga.
Tem um cerimonial próprio, desfilando, uma após outra. As oferteiras são senhoras de expressivo silêncio ou rezam o terço durante todo o caminho do enterro.
Ao chegarem à igreja, retiram os cestos da cabeça e seguram-no, em modo de oferta, no braço esquerdo.
Ajoelham diante da tarimba aos pares. Colocam os cestos no chão. E assim se conservam, enquanto se rezam os responsos finais no templo.
Terminadas as orações litúrgicas e enquanto retiram o morto da igreja, com todo o restante povo para o cemitério, as oferteiras vão deitar, numa pequena tulha numa dependência da casa de Deus, o milho que traziam nos cestos.
A propósito, convém dizer que existia numa freguesia da região de Vale de Cambra, supõe-se que em Macieira de Cambra, uma casa a que chamavam Tulha, que servia de armazém dos cereais que os frades de Santa Cruz de Coimbra recebiam do povo, quando esta região dependia religiosamente do antigo e célebre Mosteiro conimbricense, que, como se sabe, é dos primórdios da nacionalidade portuguesa.
Depois juntam-se de novo, no mesmo lugar, aguardando a chegada do sacerdote que acompanhou o funeral ao cemitério.
Beijam a estola e rezam em conjunto o Pai-Nosso. Em tempos de mais fé, cada uma das oferteiras rezava a oração dominical. Após a recitação colectiva desta oração, retiram-se para casa.
Mas não fica só por esta pública homenagem aos defuntos.
O segundo ofertório
No domingo seguinte, volta uma só oferteira à igreja, com o cesto coberto da mesma forma, trazendo-o no braço esquerdo, com pão e vinho. Actualmente bolachas e uma garrafa de vinho fino.
Apresenta-se vestida impecavelmente de preto, como no cortejo do funeral.
A sua presença, no meio da assistência à missa paroquial, gera uma vivência de sentida e respeitosa recordação dos recentemente falecidos, que pela lei inexorável foram arrebatados do seu convívio.
Aproxima-se do altar-mor, pousa a oferta no chão, ajoelha-se e espera assim, até ao fim da missa paroquial.
É uma viva presença de saudade que, há poucos dias, a grei prestou com o seu cortejo, ao levar para o cemitério os recém-falecidos, e que ali se encontra, palpitante, prestando a Deus dos vivos e dos mortos, a sua adoração e os seus rogos.
O sacerdote, no final, abeira-se da oferteira que, segurando na mão esquerda uma vela acesa, com a mão direita vai recebendo e lançando, numa salva, as ofertas que lhe deram, para ali, pública e devotamente, rezar pelos mortos. Outrora, as pessoas também assistiam, mas actualmente deixam isso à oferteira e ao sacerdote.
Terminadas as orações, a oferteira levanta-se e leva a casa do Prior a oferta que foi dada pela família.
Este pequeno rito é chamado Segundo Ofertório, que existiu em quase todas as freguesias da região.
Em Macieira de Cambra, este ofertório é apresentado em forma de torre, com a toalha armada ao redor da garrafa e por cima das bolachas que o cesto contém.
Nas freguesias de Ossela e Nogueira do Cravo, do Concelho de Oliveira de Azeméis, circunvizinhas da região de Vale de Cambra, também existiu este costume.
Nesta última, oferece a família uma carreira de pão (o conhecido pão de Ul), uma garrafa de vinho comum e uma galinha, ao Pároco da freguesia.
Desconhecendo-se a exacta origem deste aparatoso e público modo de homenagear e lembrar os mortos, parece-nos que sai espontânea e naturalmente dos nobres e superiores sentimentos da natureza humana.
Dezembro de 1973