No Moinho de Sandiães

No Moinho de Sandiães
Manuel de Almeida

Conto Serrano

1. Nota introdutória

À semelhança de outras povoações(1) do RIBACAIMA, chegaram também ao nosso conhecimento algumas lendas relacionadas com o lugar de Sandiães.

Uma delas leva-nos inclusive ao Brasil que, como se sabe, foi terra de fortuna para alguns habitantes locais, nomeadamente aqueles que tinham a profissão de fogueteiros.

Destes, destaca-se Adriano Maurício que, naquele imenso país, fez fortuna. Estava em plena atividade(2) nos inícios dos anos cinquenta do século XX. 

O caso que abaixo descrevemos passou-se, há várias décadas, no Rio de Janeiro,  Brasil e em Sandiães, terra de Cambra no nosso Portugal. Vejamos.

2. A ida para o Brasil

Dois rapazes de Sandiães o António e o  Custódio emigraram para o Brasil, antes de irem a sortes. Fixaram-se na zona do Rio de Janeiro, onde tinham parentes que lhes prestaram o apoio inicial. 

O primeiro,  o António, como caixeiro e o segundo, o Custódio, como aprendiz de fogueteiro, trabalho que já antes executava casualmente na terra natal; sobretudo no verão, altura de maior procura de foguetes.

Mais tarde,  tornou-se profissional na grande fábrica de fogo de artifício do conterrâneo e parente.

Para além da sua origem, em Portugal,  eram amigos. Dos dois,  o António era o mais débil fisicamente.

Apesar do seu trabalho ser mais protegido, por ser executado debaixo de telha, excepto quando tinha que ir fazer a entrega das mercadorias às freguesas, nunca se deu bem com o clima tropical.

Ficava muitas vezes nostálgico dos ares de Cambra, mais frescos e como tal muito mais saudáveis.

3. A morte do António no Brasil

O António, tinha sempre presente na ideia que um dia havia de regressar, comprar umas courelas e voltar a fazer a vida da sua infância.

Porém, o tempo foi passando e a sua saúde piorando. Ainda consultou os médicos e tomou remédios de botica.

Pouco valeu, já que, mais cedo do que aquilo que seria expectável morreu.

Sabedor do triste acontecimento, o Custódio foi ao seu enterro e, no trajecto para o cemitério, deu-lhe uma “pousa”(3), à semelhança do que já fazia nos seus tempos de rapaz, quando era preciso transportar, em braços,  um caixão de Sandiães para Roge, lá no longínquo Portugal.

4. O Custódio de novo no torrão natal

Uns anos depois, tendo amealhado um razoável “pé de meia” o Custódio decide regressar a Sandiães. Como não pensa voltar mais ao Brasil, dedica-se ao amanho das suas terras herdadas, mais aquelas que comprou e à vida de agricultor. 

Passou a ser aquilo que podemos chamar de “lavrador abastado”.

Tinha duas juntas de bois para lavrar uns campos grandes que possuía logo abaixo da aldeia que lhe davam uns quantos carros de milho por ano e ainda fazia carretos para quem necessitasse e fosse bom pagador. Trabalhava muito, é verdade, mas vivia desafogado!

Certo dia, lá em casa a broa estava a findar e o canastro encontrava-se cheio de  maçarocas de milho.

Por isso, malhou umas quantas cestas de espigas, encheu um fole de grãos e dirigiu-se, à noite e como era seu costume, para o Moinho de Baixo, lá ao fundo, junto ao Caima,  a fim de trazer para casa a respetiva farinha.

5. Um susto no Moinho de Baixo

Estando sozinho na azenha, àquela hora da noite e tendo já farinha suficiente para encher o fole, foi com satisfação que viu uma luz acesa  no Moinho de Cima.

Contudo, não sabendo quem lá estava – pois se soubesse que era uma alma em penitência(4), não teria dito nada – e querendo companhia no regresso ao lugar, chamou: 

– “Olá, amigo, não queres vir embora?”

O outro, o António, também regressado do Brasil, mas, desta vez,  em forma de alma, por ter deixado assuntos não resolvidos, em Sandiães, antes de ir para o Brasil, respondeu: 

– “Dobraste-me a penitência. O que te valeu foi teres-me dado a pousa no Brasil, senão eu ralava-te(5)  todo, deixando-te somente as orelhas“.

Ouvindo isto, o Custódio assusta-se e regressa a toda a pressa a casa.  Já não dorme nada nessa noite, o que levou a mulher a desconfiar que alguma coisa de grave se tinha passado.

Bem puxou por ele na manhã seguinte, mas o seu homem “fechou-se em copas”, que é como quem diz,  manteve-se calado e macambúzio.

Ainda consultou a bruxa das Agras e outra lá para as bandas do Porto, mas de pouco valeu.

5. A morte do Custódio

Se já, em antes,  era metido com ele mesmo, a partir de então não fazia outra coisa a não ser cismar com o que lhe havia acontecido, naquela noite, no moinho, lá junto ao rio. Fechado em si, pouco mais de dois anos depois, faleceu.

Como ninguém esperava aquele desfecho,  a noticia e as causa da sua morte propagaram-se pelas aldeias das duas margens do Caima e chegaram até aos nossos dias. 

Queluz, ano de 2019.

Manuel de Almeida

ANOTAÇÕES:

(1) – Nomeadamente Gatão, Vilar, Viadal, Tabaçó, entre outras.

(2) – Terá vivido em várias localidades e por lá deixado alguns empreendimentos com o seu nome – in Jornal de Cambra, nº/s:  656, de 1953  e 680 de 15/12/1954 – foto de Adriano Maurício;

O JC nº 535 de 30/10 de 1948 refere a morte, nesse ano, de António Maurício, também de Sandiães. Foi benemérito da freguesia de Roge. Ofereceu em 1933 um relógio para a torre sineira da Igreja.

(3) – Ajuda no transporte do caixão, entre duas alminhas em Portugal.

(4) – Sobre “almas penadas” ver também  o nosso conto “O Tesouro da Fonte de Gatão”.

(5) – Aqui no sentido de bater, pisar, amachucar.


As fotos foram tiradas em 2007.

a) Ponte Cepelos/Sandiães ou do Pisão.
b) Antigas arcas para guardar cereais, junto a Sandiães.
b) Ruinas do Moinho, junto à ponte Cepelos/Sandiães.

No Moinho de Sandiães
Ponte Cepelos/Sandiães ou do Pisão
No Moinho de Sandiães
Antigas arcas para guardar cereais, junto a Sandiães
No Moinho de Sandiães
Ruinas do Moinho, junto à ponte Cepelos/Sandiães