por Augusto Soares da Carvalhalva Senhora da Saúde

A minha Senhora da Saúde da Serra dos inícios da década de 1960
Ainda o raiar do dia estava longe de iluminar a linha do horizonte que o maciço da Serra da Freita desenha a nascente do vale de Cambra, e já em São Pedro de Castelões começava o anormal bulício, das casas rectângulos de luz acendiam-se em catadupa na paisagem.
Um pouco depois, ainda os galos não tinham cantado as saudações matinais, já as chaminés lançavam no escuro do ar compactos rolos de fumo dos fornos, em tonalidades bem mais claras que a luz ambiente da ainda dormente madrugada.
Todos a pé, numa genica rara, cada um a sua tarefa, as mulheres na cozinha, tachos e pratos numa azáfama, o arroz e a carne assada ao forno, nas lareiras, avivadas pelo brasido roubado ao forno, por entre petiscos vários que ganhavam forma e aroma, os bolinhos de bacalhau charriscavam em estalidos tão apressados como as cozinheiras.
Lá fora, os homens e as raparigas iam tratando do gado, … e, na adega, do engarrafonamento dos vinhos do dia.
É assim que eu lembro o início do dia 15 de Agosto dos primeiros anos da passada década de sessenta, o frenético despertar duma noite que a excitação da festa que aí vinha mal deixara dormir.
Aí pelas sete da manhã já se fechavam os tradicionais cestos de vime de duas meias tampas, tão carregadinhos de tudo que só uns cordéis fortes os conseguiam enformar.
Às oito e pico já nas casas reinava um absoluto silêncio, apenas interrompido pelo fugaz chiar de alguma porta zonza, que a pressa da partida deixara aberta, como até era costume, afinal, naquele tempo por cá ninguém tinha chave nas portas.
Ranchos de gente desciam pela encosta sul de Costa Anelha, vindos dos lados de Macieira de Cambra, mal atravessavam a Ponte de madeira de Aguincheira, entrando na freguesia de Castelões, começavam de imediato a cantar, como que num desafio aos retardatários de cá, que, afoitos, se lhe juntavam neste início da subida, serra acima, primeiro a Formiga e o Souto, depois a Tomada, as Corgas – já confluindo com os grupos de devotos e barulhentos peregrinos que dos concelhos circundantes e da beira-mar chegavam – depois Cartim, onde, na loja que áquela hora já apagava a sede dos mais acalorados, se virava à esquerda, pela estrada velha que, lá no alto, desaguava mesmo na entrada do arraial.
Lá chegados, aí pelas dez horas, era a missa festiva, seguida daquela respeitosa Procissão que a austeridade do Padre João das Neves nunca deixava ser tocada pelo mínimo traço de festejos ou brejeirices.
Os mais novos como eu, na casa dos treze anos, que não eram obrigados a ir à missa, que a enchente de pôvo era mil vezes maior que a Capela, sem parança desde a chegada, corriam todas as tendas e lojinhas de diversões instaladas na terra batida do arraial, a ver o que havia, já começando a gastar as poupanças dos últimos meses:
Eram as bolas de pano atiradas a três latas sobrepostas, com os olhos no pirolito ou na laranjada do prémio, e, talvez só pelo desafio, até os maços de tabaco interessavam, tentando-se encaixá-los dentro das três argolas de folheta que a eles se lançavam.
Daí, ia-se à barraca dos bonecos de barro puxar o cordel, a ver se saía aquele grande e colorido São Pedro, o padroeiro da nossa freguesia.
Lá pelas onze e meia, antes de apontar ao prado escolhido como o sítio ideal para o almoço da família, e todos os anos era o mesmo, sem sortinha nenhuma, lá ia eu na roleta giratória tentar ganhar aquela harmónica de boca, tão linda e cromadinha que fazia raiva.
Finda a Procissão, que mal terminada se sabia em todo o arraial, pois que a aparelhagem sonora da Festa logo começava a difundir a música folclórica do costume, era a ver quem chegava primeiro ao almoço, era chegar e alapar sobre uns imensos liteiros e mantas que desde manhã marcavam o território, num quadrado enorme para dezenas de pessoas, eram os primos e demais parentes a manter a tradição de sempre.
Até uma tal Adelaide, de Boialvo, que muitos anos tinha trabalhado lá em casa, e seu pai, ali vinha almoçar o magnífico arroz de forno da minha avó, e o frango e a vitela assada, e os filetes de pescada, e o bacalhau frito, e os panados, e o presunto e as chouriças, e os bolinhos de bacalhau, e mais as outras coisas que os parentes traziam.
A sobremesa, que naquele tempo não era tão importante como hoje, era sempre a mesma: Melão e Melancia acabadinhos de comprar no arraial.
Lá p’rás duas da tarde, as mulheres iam para a Capela rezar e pagar as suas promessas, que todas tinham, que a Senhora da Saúde sempre foi mãe e nunca lhes falhou.
Os homens, esses, parando esporadicamente nas rodas onde se cantava ao desafio, tinham outras devoções, grupos de amigos corriam todas as tendas do arraial, de lés-a-lés, num despique de prova de vinhos e de petiscos, cada qual, à medida que a cara ia corando, melhor enólogo que o outro.
Os rapazes mais velhos, em grupos de dois ou de três, era vê-los afoitos, palrando alto como nunca, seguindo os grupinhos de raparigas que para o efeito, como por milagre da Senhora da Saúde, se iam formando.
Um ditote daqui, uma resposta dali, … e tudo se emparceirava, ninguém vinha da festa sem ter arranjado namoro.
Os miúdos mais novos, que pareciam ter pressa em gastar o resto do dinheiro – que, entretanto, tinha aumentado bastante graças a algumas benesses extra da família durante o almoço – eram como bandos de pardais saltitando, eram os carrinhos eléctricos, eram os carrosseis das girafas e dos cavalinhos, eram as cadeirinhas voadoras, era as compras indispensáveis, o tambor e as pandeiretas, e para os mais pequenos as carretas e as camionetas de pau.
Às quatro e pouco, retorno ao ponto de encontro do almoço, era a merenda a chamar, era continuar aquela divertida reunião de família, agora ainda bem mais viva e animada.
Mas, em casa, obrigações urgentes chamavam, os casais mais velhos, logo após a merenda, iniciavam a descida de regresso, tinham os afazeres diários inadiáveis, gados e bicharada para cuidar e alimentar.
Os restantes de nós, cada um à sua conveniência, lá davam andamento aos planos que este prazeiroso dia lhes tinha destinado, rapazes e raparigas iam combinando a viagem de regresso, embora agora estorvados pelos miúdos mais novos, a prenda que os pais lhes tinham deixado como guardas dos namoricos com que a milagreira Senhora da Saúde os tinha bafejado.
E à noite, já em casa, já pouco se falava, agora era a saudade a minar os espíritos, toda a gente cansada e sorumbática, estou certo que só de pensar que apenas dali a um ano teriam a próxima Romaria da Senhora da Saúde da Serra.