O passeio a Fátima

O passeio a Fátima

É madrugada, quarta-feira, doze de Maio de 1965. O tão ansiado dia, (do “passeio” a Fátima) tinha finalmente chegado.

No pátio da Tia Belmira um galo cantou. O garnisé da Tia Rosa do Caçoilo, no seu jeito um pouco esganiçado, respondeu de pronto.

Meados de Maio, o dia clareou cedo e o sol adivinhava-se prós lados de Cavião.

Na cozinha ouviam-se vozes, sinal que meus pais estavam a pé. Minha mãe, acondicionava, na alcofa de palha, (adquirida na Figueira da Foz, aquando duma outra ida a Fátima), bolinhos de bacalhau, bacalhau frito, (demolhado na Fonte do Com-Adro), frango corado, chouriça cozida e um naco de presunto, tudo confecionado de véspera.

Enquanto executava a tarefa, não desviava o olhar do tacho do arroz, que depois de pronto e ainda quente, será embrulhado em jornais, para manter a temperatura.

Meu pai, com o fato de ver a Deus vestido e os sapatos “novos” (e únicos) calçados, um pouco (muito) desgastados pelo tempo e pelo uso, mas que naquele dia brilhavam como “novos”, foram engraxados por mim. São os mesmos que, faz muito tempo, comprou na sapataria do Tio Joaquim Petisca, no Lugar do Pinheiro Manso.

Com a farpela quase completa (faltava o chapéu e o casaco), era chegada a hora de “rapar os queixos”.

Pegou na velhinha Gilete, colocou a lâmina, ensaboou a face e começou a fazer a barba, tentando fazê-lo sem se cortar, tarefa nunca antes conseguida.

Enquanto isso, minha mãe terminou de cozinhar o arroz, seguidamente, com a perícia de quem já o tinha feito, inúmeras vezes, embrulhou o tacho em jornais e colocou-o na alcofa, uma toalha aos quadrados por cima e estava pronto o farnel.

Sem se deter, porque o tempo urge, foi “acomedar” o porco, passou pelo galinheiro, deitando às galinhas, o quinhão a que tinham direito. Já os coelhos, esses, foram presenteados coma erva apanhada no dia anterior.

Terminadas estas tarefas, agora sim! Tudo estava a postos, era tempo de tratar de si e de mim, (do “tercô”, como era hábito naqueles tempos, designar o filho mais novo).

Ouvi passos vindos na direcção do quarto onde dormia. Minha mãe entreabrindo um pouco a porta, sussurrou: – Tino! Tino! Ó Tino, está na hora! Levanta-te! Quando mal precatarmos, está aí o Tio Zé Careca com a “caminete”!

Ensonado, e um pouco relutante, lá me predispus a deixar o aconchego do colchão de folhelho, e rapidamente me apercebi que tinha chegado o dia tão ansiosamente aguardado, a ida a Fátima!

Como era para passear, lá fiz o “favor” de saltar da cama.Vesti a camisa branca e calças às riscas, que o Tio António Valquaresma confeccionara, as mesmas que foram estreadas no último Natal e calcei os sapatos quee stavam no lugar do costume (debaixo da cama, mesmo ao lado do penico).

O casaco de malha, comprado no “barateiro” na Feira da Gandra, seria a última peça da indumentária a ser vestida.

Depois de passar água pelos olhos (a mesma onde meu pai lavou os seus), utilizando a que estava na bacia esmaltada do lavatório de ferro, que se encontrava junto à porta de entrada, fui sentar-me no banco comprido, junto à mesa da cozinha.

À minha espera, estava uma “malgada” de café (cevada) com faúlhas, confeccionado à lareira, na velha panela negra do uso e dos anos. Para uma maior substância, tinha broa esmigalhada e côdeas incluídas.

Com as trouxas arrumadas junto à porta da entrada (o palhinhas ia junto ao dono, para de vez em quando, levar uma “pancada”), só faltava que o Tio Zé Careca chegasse e, com ele, a tão ansiada “caminete”.

Passado uns minutos, ouviu-se um barulho vindo do fundo de Coelhosa. Estava a chegar a “caminete”, que nos levaria, para o tão desejado passeio a Fátima. Como era de esperar, eu estava em “pulgas”.

Com os “peregrinos” a bordo, um a um e calmamente, foram ocupando os seus lugares, como invariavelmente acontecia por estas ocasiões, eu não pagava bilhete, com a minha esguia (magra) figura, acomodava-me no meio dos meus pais, por esse motivo (esperteza) não pagava bilhete.

Seguimos em direcção ao Pinheiro Manso. Entraram dois casais e uma pessoa que não conhecia, com as alcofas, alguns “palhinhas”, cestas e sacas, acondicionados na mala do autocarro.

Os restantes garrafões, iam junto aos proprietários, (não fosse o “diabo tecê-las). Tudo estava a postos. Para trás ficou o Cimo da Aldeia.

Ao passar ao Miradouro das Baralhas, deito um último olhar para a minha querida Coelhosa. Vislumbro lá longe, a minha velha e centenária casa. O solar de Coelhosa e a Capela, com a torre sineira, destacam-se na paisagem como baluartes.

A primeira comunhão e a de fé, foram feitas aí, onde todos os Domingos se ia “ver a Deus”.

A segunda recordação da diáspora, um hino aos brasileiros de “torna viagem”, à perseverança de quem saiu para o Brasil “com uma mão atrás e outra à frente”, construindo e investindo depois na sua terra.

Na encosta das Figueiras e no Aido de Baixo, de casario juntinho, como que se apoiando, novelos e espirais de fumo, elevam-se de algumas chaminés, sinal que os feijões e o adubo, estavam às voltas na panela.

Nos campos, os batatais e os milheirais, enriquecidos pelo calor e Sol de Maio (está um tempo criador) estão lindos e viçosos, formando um bucólico e belo quadro, em vários tons de verde, contrastando com o castanho da terra lavrada.

É uma imagem, que inebria. Ainda hoje sinto o mesmo, quando contemplo aquele cenário.

As Baralhas ficaram para trás, Ponte dos Sagueiro, Salgueiros, Sobradelo, Vermoim e Mata do Covo, um local que evoca alguns personagens de meter medo, onde e invariavelmente, por alguns dos presentes, as histórias de tardos, lobisomens e salteadores, eram mais uma vez recordadas.

Centro de Oliveira de Azeméis e aí vamos nós pela Estrada Nacional Número Um.

Primeira paragem, perto de Águeda. Diz o Tio Zé Careca: – Ei!Ó pessoal, vinte minutos para uma” bucha” e aliviar a bexiga! ainda temos muito que andar!

Os homens, atrás da primeira árvore, ou silvado que lhe aparecesse pela frente. As mulheres sofriam um pouco mais, pois tinham por vezes de se embrenharem pelos pinheirais adentro para, a coberto do arvoredo ou de uma qualquer mouteira, aliviarem a tão maltratada bexiga.

Depois da barriga sossegada e da primeira incursão à alcofa, é tempo de nos fazermos ao caminho, porque a Curia espera por nós.

Aí chegados, trouxas para fora da mala do autocarro, abancar no melhor local e satisfazer o apetite.

O dia ia adiantado e a fome fazia-se sentir. Como era hábito, naqueles tempos de antanho, cada excursionista apresentava o que de melhor tinha no fumeiro ou na salgadeira. Dispostos na toalha, viam-se o naco de presunto, a chouriça cozida de véspera, o frango corado, os bolinhos de bacalhau (com bacalhau), suculentas postas de bacalhau frito e o tacho de arroz, cozinhado um pouco antes da partida, embrulhado em folhas de jornal, que o mantinham ainda quente.

O garrafão (inseparável palhinhas, com as iniciais do nome do dono bem à vista) era peça central, como círio de altar em dia de festa.

O pão, era mercado (comprado) muitas vezes, aí mesmo, na Curia. No final do repasto, uma visita às termas. As mulheres em busca de uma lembrança que ficasse mais em conta.

– Ó senhora, quanto custa a caneca?

– Três mil réis!

– É caro, não pode deixar por dois mil e quinhentos?

– Ó minha rica, por esse preço, perco dinheiro!

– Está bem, fica para outra vez.

Outros tempos. “Marralhava-se”, até por cinco tostões. Alguns homens, procuravam a tasca mais próxima, para apreciarem um “meio” da Bairrada, gabando entre si, (alguns eram mesmo conhecedores) a qualidade do palhete.

Com o estômago aconchegado e a vista saciada, é tempo de levantar “âncora” e rumar à próxima paragem, o Buçaco.

Aí chegados, imediatamente o meu saudoso pai fazia tenção de me esclarecer sobre a História que aprendera nos bancos de escola, na sua querida Midões, no Concelho de Tábua.

Confidenciava-me ele, quando estávamos frente a frente com a História: aquela figura era de um general Inglês qualquer (Wellington), o palácio do Buçaco, fora mandado construir por um fulano muito importante, que a mata fazia parte de um vasto território de parque, que os canhões fizeram parte das batalhas contra os invasões Francesas. Os canteiros e pedreiros eram do que melhor havia no País.

Era assim que eu, sem o saber, lentamente (até hoje) fui adquirindo o gosto pela História. Foi o meu pai, com o seu saber adquirido nos montes (como resineiro), nos campos e nas hortas, nas pedreiras (cabouqueiro), manobrando a betoneira (construção da Adega Cooperativa e Santuário da Senhora do Desterro entre outras), entre as muitas actividades que ao longo da sua vida exerceu.

Foi ele, que me incutiu, o gosto pela História, num tempo em que no nosso País, (1944) mais de 70% da sua população era analfabeta, já meu saudoso pai, era proprietário de um dicionário (que ainda conservo). Foi com ele, ainda antes da escola, que aprendi, nomes de gente, lugares e acontecimentos, nas viagens que as excursões proporcionavam.

Concluída a esperada e aguardada visita ao Buçaco, é tempo de continuar a cumprir o itinerário previamente acordado, esperar por um ou outro retardatário (sempre os há) e ala a caminho da Batalha.

Quando o autocarro se imobilizou, imediatamente grupos de pessoas se acercaram do Monumento. Era obrigatória a visita, ao túmulo do Soldado Desconhecido.

Mais uma vez, meu pai, respeitosamente, de chapéu na mão, “saca” da sua sabedoria relativamente à Historia de Portugal, para me esclarecer sobre quem era o rei, que jazia no sarcófago (túmulo) ricamente decorado, por artistas e canteiros, que estávamos a presenciar, quem mandou construir o Mosteiro da Batalha (Santa Maria da Vitória), quem era Afonso Domingues, para eu reparar na qualidade do trabalho dos pedreiros e canteiros etc.

Terminada a visita, alguns dos homens procuraram uma das muitas tascas existentes na preferia do Mosteiro.

As mulheres, regateando sempre, tentavam mercar uma recordação, principalmente de louça, numa das muita bancas de venda de quinquilharias e lembranças. E lá voltava a lenga- lenga do “marralho”.

– Ó patroa, quanto é que você faz por esta travessa?

– Por menos de dez mil réis, não posso vender

– Dez! Dez mil réis! Dez mil réis, é um roubo!

– Ó minha “santinha”, se tem alguém que faça mais barato, vá lá e aproveite. Por menos de dez, a travessa daqui não sai. Ora essa!

A tarde ia adiantada e Fátima, chamava pelos peregrinos. O Tio Zé Careca depois de verificar que estavam todos a bordo, deu instruções ao motorista para rumar à Cova da Iria.

Cinco da tarde. Avista-se ao longe a cruz da Basílica. Os rostos, cansados da viagem, iluminam-se. O cansaço, como que por magia, desaparece. Acredito que a maioria de nós já sentiu essa energia, é algo, que não se explica.

Com o autocarro estacionado, o primeiro contacto com a realidade.

Para mim, tudo é novo e numa escala que não imaginava, centenas de camionetas de todos as cores e feitios, alinhadas em filas sucessivas até perder de vista.

Uma imagem que guardo até hoje: o rosto sofrido das mulheres, o negro dos trajes, lenço na cabeça ou pendurado pelos ombros, muitas de xailes escuros, do luto pelos seus (observado com rigor), mas também em sinal de dor pelos filhos, maridos ou outro familiar, que combatia os “Turras” na “defesa” da Pátria, nas Províncias Ultramarinas.

Apesar da minha tenra idade, procurei imediatamente memorizar pontos de referência, para uma mais fácil localização do autocarro. Uma frondosa azinheira e um poste de iluminação por perto, com a Cruz Alta à vista.

Acompanhado pelos meus pais, a primeira visita ao recinto, primeira paragem para a compra de uma “velinha”, para o pagamento da promessa.

Segunda paragem, Capelinha das Aparições, ajoelhar e rezar com a devoção dos anos sessenta, olhar para a imagem da Senhora com admiração imensa e no final, a “esmolinha”.

À noite, e depois de mais uma ida à alcofa do farnel, muitos dos peregrinos, que connosco viajavam, foram à Procissão das Velas.

Minha mãe, levou-me com ela. Pela primeira vez vi e assisti, ao espectáculo que só poderia almejar através da televisão no Café Central do Pinheiro Manso, gerido com mão de ferro, pelo Ti Manel “do Café”.

Era uma multidão imensa, um mar de luzes e pessoas. Para quem nunca saía da “parvónia”, foi um acontecimento, que nunca mais se esquece. Enroscado na charpe (cor de café com leite, esta memória!), com a cabeça a pedir cama, perdão, a pedir banco da “caminete”, lá ia tentando manter os olhos abertos, porque a Nossa Senhora, “estava a ver tudo”, dizia a minha mãe.

Foi muita a emoção, para o primeiro dia. Finda a procissão das velas, regressamos.

Cada um dos passageiros tentava, a muito custo, “fechar os olhos”. O barulho não terminava nunca: eram portas a fechar, portas a abrir, outras a bater.

Em muitos sítios, o néctar de Ourém já reivindicava os seus efeitos, por isso os diálogos aconteciam, num tom mais acalorado.

No dia treze, o grande dia, meus pais foram dos primeiros a levantarem-se. Levantarem-se, é como quem diz, deixar o “aconchego da caminete”, que por aquelas alturas, cheirava, a “gasóile”, comida, cigarros, palhetes (aquele cheiro a enxofre, nunca mais me saiu das narinas) e vinho.

Um café na primeira tasca que encontrassem.

Estava chegada a hora da tão ansiada, e sempre executada, volta aos Lugares Santos.

Lugares de visita “obrigatória”, que todos os anos, meu pai fazia tenção de não perder, (fora promessa à Virgem, dizia ele) Igreja Matriz de Fátima, Valinhos, Habitação dos Pastorinhos, Poço da Aparição do Anjo, Capela dos Húngaros.

Como é obvio, as “aulas” de História continuaram. Nada escapava à perspicácia de alguém que, descendendo de analfabetos, tinha orgulho nas suas raízes e origens. Em suma, era um homem do povo, contudo, e ainda assim, não perdia o ensejo de cada dia saber mais, tentando passar-me esse seu gosto pela História e saber.

Recordo também que meu pai não perdia por nada a procura das tascas (ou tasca), que servia o melhor néctar das terras de Ourém. Localizado o “Templo de Baco”, era certo que ele, e os companheiros de peregrinação, durante o período que durava a estadia, seriam presença notada ao longo dos dias. Beber vinho é dar de comer a um milhão de portugueses, recordam-se da célebre frase?

Não era necessário insistir muito, para os portugueses seguirem à risca, as ordens de quem a proferiu.

Depois do périplo, regressamos para junto do autocarro. Jantar, dar uma volta pelos arredores, a “fazer horas”, para as cerimónias do adeus final, ainda antes das dez horas da manhã e, sem que minha mãe se apercebesse, fui sozinho arranjar um local onde pudesse aliviar a bexiga.

Em 1966, os arredores do Santuário, eram ainda despovoados e com muito mato a volta, locais propícios para o acto que me levou a deixar o “conforto e segurança” do autocarro.

Cada um safava-se como podia (homens mais à vontade e mulheres escondendo-se como podiam).

Mas voltemos à minha saída. Resolvidas as necessidades fisiológicas, percebi que, na ânsia de me “esconder” o melhor possível, afastei-me mais do que pensava. Quando tentei encontrar o caminho de volta, logo me apercebi que estava perdido.

Filas intermináveis de autocarros, de todas as cores, formas e feitios, complicavam ainda mais a minha tentativa de localizar o meu. Os meus pontos de referência sumiram-se. E agora? – pensei eu – o que fazer para encontrar, a malfadada, “caminete”?

Não entrei em pânico. Sabia que se chegasse à entrada do recinto, a Cruz Alta, seria a minha bússola. Se bem o pensei, melhor o fiz. Canetas a caminho, com a torre do Santuário como referência e ala que se faz tarde.

Quando estava na periferia do Recinto, e junto duma enorme tenda, notei que grupos de peregrinos se dirigiam para ali. Quando abandonavam o balcão, vinham munidos de copo e sandes de marmelada ou bolachas (estamos em 1965/66, repito).

Ninguém pagava nada! Eu estava confuso, num tempo em que ninguém dava nada a ninguém… Na minha frente, estava uma tenda que estava a servir, a quem o solicitasse (de borla), café, leite, leite com café, bolachas, sandes de queijo e de marmelada.

Sinceramente, não entendia. Um pouco a medo, abeirei-me do balcão. Uma senhora sorridente olhou para mim e perguntou:

– O que quer o menino?

Como não estava habituado a que me dessem nada, fiquei hesitante, encabulado, pedi café com leite e uma sandes de marmelada. A senhora do sorriso serviu-me sem mais demoras.

Satisfeita a curiosidade, e saciada a fome, fui ter com os meus pais. Abeirando-me da minha mãe, não conseguia conter a excitação, da descoberta dum local em que pessoas estavam a dar sandes e bebidas, sem pedir dinheiro, nem fazer perguntas.

Quando contei à minha mãe o sucedido, ela, um pouco intrigada, perguntou-me:

– Recordas-te se havia algum nome na tenda onde foste atendido?

– Sim, respondi eu, estava escrito numa tabuleta Cáritas Portuguesa.

Minha mãe, com os seus poucos conhecimentos, (não sabia ler nem escrever) elucidou-me sobre a entidade em questão, tentando explicar-me o que faziam, dizendo, são pessoas que dão comer aos mais pobres e aos peregrinos. Não entendi muito bem o que queria dizer, mas que a sandes de marmelada e o café com leite, me souberam muito bem, lá isso souberam. Só muitos anos mais tarde, e já adulto, compreendi, o alcance e a importância, da Cáritas Portuguesa.

Entretanto, a hora da procissão do adeus aproximava-se. Meus pais, deslocaram-se para o Recinto, na esperança, de arranjarem um lugar próximo dos corredores por onde a procissão passava, para assim estarem mais perto do andor. Eu tentando acompanhá-los, e agarrado à mão da minha mãe, não tirava os olhos, daquele aglomerado de gente, uns rezando, outros chorando, outros ainda cantando, muitos cumprindo promessas há muito adiadas, caminhando de joelhos, apoiando-se em velas, mais altas que o seu sofrido e gasto corpo.

Homens havia arrastando-se com a farda de camuflado vestida, todos eles, no cumprimento da promessa que os mantivera vivos, numa guerra, que nunca foi sua Todos agradeciam à Virgem a graça de os ter poupado mas, o que a mim, criança, me fazia mais confusão, eram as filas intermináveis de mulheres.

Tantas mulheres, todas elas pagando promessas, por si e pelos seus, vestidas de negro, dos pés à cabeça, de todas as classes e estratos sociais. Naquele momento e local, as diferenças esbatiam-se, eram todas iguais, irmanadas do mesmo propósito e sofrimento. A maioria de rosto sofrido, notando-se em muitas delas, a velhice precoce.

O seu aspecto tinha a ver com a idade? Obviamente que sim, em algumas delas, para a maioria, o desgaste, era motivado por outros factores, trabalho duro, da vida rústica que levavam, carregando consigo o sofrimento dos filhos, netos, maridos, pais, sogros e irmãos, (por vezes, até pela saúde dos animais) dava a sensação que eram elas, que carregavam nos ombros, o sofrimento e as promessas, da família e de toda uma Nação. Estas imagens, apesar da minha tenra idade, marcaram-me para sempre.

Finalmente, o momento do adeus ao andor da Virgem. Eu, de olhos arregalados, não perdia pitada. Quando voltasse a Coelhosa, tinha muito que contar aos colegas. Absorvia tudo e também queria participar. Pedi à minha mãe um lenço, sem saber muito bem porquê. Também eu, me deixei envolver por aquele momento, abanando o lenço e dizendo adeus.

Quando o andor, iniciou a subida dos degraus da Basílica, foi como que o acordar duma espécie de transe colectivo, era o desmontar do “espectáculo”. Naquele momento, a preocupação era chegar o mais rapidamente ao transporte.

O trânsito era muito, todos queriam sair primeiro, porque nos anos sessenta, as estradas que davam acesso a Fátima, eram estreitas, muitas curvas e com o piso degradado.

Já a tarde ia adiantada, quando o autocarro iniciou a viagem em direcção à Figueira da Foz. Depois de várias peripécias de avanços e recuos, lá conseguimos sair de Fátima. O resto do percurso em direcção à Figueira, foi um pára arranca interminável, contudo, tudo correu sem problemas de maior.

Com o cansaço e a fome a fazerem-se sentir, Figueira da Foz está à vista, não sem antes, ter mais uma aula sobre salinas e sal.

Quando passámos pelas salinas, o meu pai, confrontado com as minhas perguntas e curiosidade, não teve outro remédio, senão responder o melhor que sabia (e sabia muito) a toda uma catrefada de questões, que eu lhe colocava, continuando sem se deter, na sua explicação sobre o sal, como era feito, a evaporação da água e o trabalho dos homens que o faziam e carregavam.

Saciada a curiosidade, era tempo de saciar também, os depauperados estômagos. Na Figueira da Foz, depois duma ida rápida à beira mar, a visita ao Mercado Municipal era obrigatória. Havia espaço, várias bancas com produtos da época (primeiras cerejas, eram compradas e provadas aí). Havia também bancas de recordações e quinquilharias diversas, outras ainda, alusivas a Fátima, para aqueles que o não fizeram na Cova da Iria.

Havia ainda, um outro local, que não sendo nem “fino”, nem muito espaçoso, continha em si, um misto de restaurante e tasca. Havia nele uma particularidade que ano após ano, levava a que a clientela voltasse ali. Havia um papagaio, firmemente agarrado ao poleiro. Quando os clientes entravam, não emitia um pio mas, à saída e em tom estridente, berrava: – Ó filho da “fruta” já pagaste?

Todos riam, com as tiradas do papagaio, que sem o saber, era com certeza, uma mais valia para o aumento das receitas, do referido “tasco” restaurante.

Depois de acomodados, num canto junto a uma meia-porta, meu pai pediu uma sopa e pediu um maduro. Só um? Este pormenor não o recordo, mas tenho as minhas dúvidas que tivesse sido só um. A minha mãe, com os últimos trocos que tinha no porta-moedas (mais tarde, ouvi-a contar isso mesmo à minha madrinha e minha irmã, cinco escudos) pediu, para ela e para mim, peixe cozido com batatas cozidas e feijão verde. Esse pormenor, recordo com nitidez.

Satisfeitos e acalmados os estômagos, com o cansaço a revelar-se em muitos rostos, está na hora da partida, em direção ao Norte. Em grande parte da viagem do regresso, com o coração mais leve pelo cumprimento das promessas, cantavam-se cantigas alusivas a Fátima e à Virgem.

Depois do reportório esgotado, eram outras as canções, de cariz folclórico e popular. Recordo uma em particular, que minha mãe cantava a plenos pulmões e de forma sentida (agora, que sou mais velho do que ela era na altura, como eu a compreendo…). Era assim: “A Primavera vai e volta sempre / A mocidade vai e não volta mais”, além de outras com quadras de alguma brejeirice.

Lentamente, o cansaço toma conta da maioria. Os cânticos vão esmorecendo, o sono vai-se apoderando de alguns. Algumas cabeças escorregam em direcção às janelas, outros, de olhar vazio e inexpressivo, fixam o horizonte, talvez quem sabe, pensando no dia de amanhã e naquilo que os espera, novamente a enxada, a pá, a picareta, a carreta, a foucinha, o engaço e a forquilha. No milho, que é necessário sachar e ”arrendar”, nos regos das batatas que é preciso abrir, no leirão dos feijões de “baige”, que já devem estar a precisar de estacas.

Outros pensarão, talvez, na agrafadeira, no ferro de soldar, na cravadeira ou no balancé, do Almeida & Freitas ou da Rimarte, no descasque dos pinheiros, ou na condução do charrió, na Serração do Paiva, na talocha e na colher, na betoneira e no godo, outros porém, na fábrica do queijo do Martins & Rebelo, ou da manteiga, na Lacto Lusa, tudo não passa de suposições, nunca o saberemos.

Aventino Monteiro (Latoeiro, Fazedor de latas)
Lordelo, 18/04/2020 (em memória de meus pais)