Um conto de Natal

Um conto de Natal
Foto de Augusto Soares da Carvalhalva

por Augusto Soares da Carvalhalva

Pela enésima vez, … mais recentemente a pedido do Gustavo, o meu neto mais novo, antes foi o irmão, o Guilherme, … e há trinta e tal anos foi o pai de ambos, todos pedindo que o contasse de novo, talvez a ver se à enésima vez ainda aquela magia do Natal continuava a acontecer no conto, igual como eu sempre lhes contei.

Escusado será dizer-vos, devo confessar, que os meus contos são como todos contos, que vão evoluindo com os pontos com que em cada conto tudo de novo se conta.

Então, cá vai :

Lá em Mecula, no norte de Moçambique, naquela véspera do Natal de 1973, em pleno verão, o dia tinha sido amorfo, para não dizer triste, que o Natal que desde há dias nos preenchia o pensamento era um outro Natal, um Natal de Inverno, com neve, … que na nossa cabeça bem o víamos e sentíamos, em tela inteira, apesar de tantos milhares de quilómetros de distância a que estávamos, ali bastante fundo no Hemisfério Sul.

Todos os militares dentro do arame farpado do Aquartelamento, … nada de Operações na mata, nada de patrulhamentos, nada de Colunas de Reabastecimento, nada de saídas de Piquete, nada de Saídas, nada de coisa alguma, quase um silêncio absoluto, … só um ou outro click de cápsula de cerveja Laurentina se ouvia espaçadamente tilintar no chão.

Já o almoço tinha passado há algum tempo, e nada, ainda também nada em tudo, a impaciência a medrar-nos o desânimo, a avioneta que nos traria o Correio de Natal, a Islander do Subtil estava atrasada.

Não era tanto por algum eventual pequeno pitéu, surpresa de natal, que do Comando de Vila Cabral nos fosse enviado, era, tão simplesmente, do Correio que o nosso Natal precisava.

Finalmente, às três da tarde, sorte nossa, que o Subtil nunca falhava, lá fui eu, em serviço de Sargento de Piquete, com todo o pessoal de Piquete desse dia, montar a segurança à Pista de aterragem.

Ali chegados, rai’s parta a nossa sorte, metade da pista estava ocupada por uma família de elefantes, macho, fêmeas e alguns filhotes, uns dez no total. Uns tiros para o ar, e nada, parece que nem ouviam, uns lançamentos ao ar de quicos e de casacos do camuflado, e nada, parece que nem viam, uns bem roncados e poeirentos rodopios em derrapagens do Hunimog, e nada, parece que nem tal sentiam.

Às tantas, já todos desesperados, um ron-ron distante, a Sul da pista, era o Subtil já a iniciar o mergulho sobre aquela língua de capim e terra batida. Nem a barulheira da Islander mexeu com os elefantes, apesar das várias tangentes do Subtil.

A tarde começava a pôr-se, o Sol arqueava já o seu andar para Ocidente, para além da cumeada da Serra de Mecula, … e nada, nada se previa ser possível fazer, a não ser, veio-me à ideia, um milagre, que era Natal (era neste momento da história, quando a contava, que as minhas crianças, o meu filho e trinta e tal anos depois os meus netos, mais arregalavam os olhos para mim, já antevendo o herói que eu estava destinado a ser) que o céu bem saberia da tanta urgência, que a rapaziada militar de Mecula tinha das cartas de Natal da família.

Tudo aconteceu devagar, caminhei resoluto em direcção ao grupo de elefantes, em cujo centro algo se se passaria, dado o círculo fechado que formavam. À minha aproximação os machos do círculo exterior voltaram-se e roncaram baixo, e, coisa estranha, logo abrindo alas, … mais uns passos e deparei com o centro de tudo, uma elefante tinha acabado de dar à luz, … estava cutucando o bebé a pôr-se de pé. E de novo o círculo de elefantes se fechou à minha volta, sombreando ainda um pouco mais o espaço – aquele fulgurante casebre de Belém que naquele momento ali pressenti – um côro de roncos mais, e todos os elefantes apontaram a marcha para lateral da pista, com o bebé elefante à frente, a indicar o caminho, como um Menino Jesus adorado, … no chão, à minha frente, ao lado da minha arma G3, que à chegada ali pousei, uma ponta de marfim ficara sobre o capim raso, … como fruto do milagre de comunhão e entendimento de espécies que ali tinha acontecido, … um presente de Natal.

Um pouco depois, agora já vivificados e felizes com o que tinha acabado de nos acontecer, alegria e muitos abraços entre todos, especialmente ao Subtil que trazia o que tanto queríamos, as Cartas de Natal das nossas famílias.