por adão cruz
Aqui há uns anitos escrevi um texto intitulado “Os velhinhos”, por acaso publicado no meu livro CONTOS DO SER E NÃO SER que deve chegar às livrarias até ao fim deste mês. Sobre o mesmo tema escrevi, algum tempo depois, este pequeno apontamento, uma espécie de enxerto de encosto ao primeiro, ou melhor, enxerto de garfo.
Lá estava eu no meu lugarzinho, no centro da primeira sala, quando começam a entrar os velhinhos da terceira e quarta idades. Uma verdadeira enchente.
Quase parecia uma peregrinação. Não sei qual a causa de tal invasão, mas talvez a mudança da hora lhes tenha feito sentir que havia mais uma hora de vida.
Um verdadeiro caos que pôs os empregados à nora, a servirem aos gritos e a trocarem peixe por carne e entradas por saídas. Nunca tal barafunda eu vira naquelas salas.
Gostaria de descrevê-los a todos mas era impossível. Um deles, com muitos em cima dos oitenta, de calção e mochila às costas, presa apenas pela asa esquerda e que o fazia pender para esse lado, pendência que ele equilibrava com a bengala, caminhava quase afoitamente em frente. Dizia o provável filho que o seguia atrás:
– Sempre em frente, cuidado com o degrau.
Repetia o velhinho:
– Cuidado com o degrau.
Mas se não fosse o filho deitar-lhe a mão à alça da mochila bem que ele batia com o nariz no chão.
Logo de seguida, outro pai velhinho, com um andarilho. Dizia-lhe o presumível filho:
– Cuidado com o degrau.
– Eu sei, respondeu o pai.
Mas se não fosse a rápida mão do filho a arrepanhar-lhe a gola do casaco, lá ia o almoço do dia em que a hora mudou.
Um outro velhinho, de braço dado com a filha ou nora, era delicadamente arrastado ao longo da sala. Ao passar junto à minha mesa que ficava mesmo em cima do trajecto, embateu com uma cadeira que estava um pouco desalinhada. Olhou-me com a ferocidade que a idade lhe permitia e atacou:
– Que grande merda.
Uns passos adiante, alguns neurónios lhe devem ter dito que não foi correcto. Voltou a cabeça na minha direcção, e com um esgar em forma de sorriso emendou:
– Desculpe.
Eu ia a meio do pernil, quando entrou uma velhinha muito pequenina e curvada, acompanhada pela filha. Desta vez era mesmo filha, porque as caras eram iguais. Uma filha alta, quase velha e de mini-saia na fronteira do arrojo. A mãe desejou-me bom apetite, com um sorriso do tamanho da filha que tinha uns saltos dos sapatos do tamanho da mãe.
Já eu tinha na frente o cafezinho, quando entram três irmãs, ali à volta dos noventas, discutindo entre elas se o cozido teria orelheira e focinho. Se não tivesse iriam para o robalo. Sentaram-se atrás de mim e a conversa continuou, desta vez à volta do tintol. Meia ou uma?
Um após outro, uma após outra, entrelaçados de filhos, netos e artroses, os velhinhos entravam aos magotes, como eu nunca vira, em direcção ao sacrossanto altar das tripinhas e do cozido.
Eu sei lá, era tal a balbúrdia que os empregados perderam a postura e até me debitaram metade do que eu consumi. Não incluíram a segunda caneca de tinto nem o pão nem o bagaço, mas puseram na conta uma sobremesa que não comi.
Costumo sempre corrigir as contas, mas desta vez, dada a confusão, calei-me. Ficou ela por ela. Muito bem me sabia estar ali mais algum tempo, mas a minha mesa, que era de três, estava a ser precisa.