Mel de caju


A Isabel nunca andara na Faculdade para falar tão bem nas
traseiras do sentimento mas foi criada de servir em Bissau o
que numa aldeia do mato era um curso superior
Isabel era uma mulher muito bonita daquelas que são
sempre futuro ainda que a pele se engelhe
As suas formas afeiçoavam-se aos olhos mais despindo a
existência do que o corpo
Uma espécie de mulher à flor da pele bem calculada por
dentro
Mulheres nascidas de si mesmas sem vida nos outros
Mulheres de além-desejo voo de ave caminhando fora dos
passos
Isabel um torvelinho de tonturas
O homem dela sabia a mulher que tinha e todo se babava
quando se dizia que ela era mais linda que surucucu
empinada mais doce que fruto de caju
Todo ele era uma viagem por dentro da Isabel
adivinhando-lhe o mundo no contar das coisas
Manhã levantada era sol de todo o dia noite deitada era
sonho que não dormia
Um dia…
Frente à palhota da Isabel o médico limpava com uma
compressa embebida em permanganato de potássio as
feridas do dorso das vacas verdadeiros buracos abertos
pelos estilhaços das granadas e pelos pássaros pica-sangue
impiedoso tormento dos animais
Ao cair da noite…
Tudo é fingimento quando o sangue não se entorna no
desaconchego da solidão
O provisório serve o regresso da alma o fogo de outros calores
invade os olhos através de janelas que há muito se não abriam
Aceitou o convite não mediu a fome nem a galinha sonhou o
despir da Isabel até à nudez pecaminosa e espetou os olhos
no cair da noite
Ao cair da noite Isabel estava no último acto da confecção do
delicioso cafreal da tabanca
Primeiramente refogado apenas em sumo de limão e piripíri
depois grelhado na brasa e em seguida frito com cebola
Os olhos dele cravaram-se não na galinha mas nas ancas da
Isabel
Seguiam a luz sensual do petromax que penetrava
abusivamente na malha de tule até às roupas que vinham de
dentro
Senhora de reflexos e de encontros Isabel não prestava
menos atenção à sedução do que à galinha
Não era preciso entender como é que uma pequena caixa e
um disco de madeira giravam música
O esvoaçar do tule era o centro do mundo o arder da
fogueira de todo o frio
Toda a força daquele colo maternal toda a ternura da
silhueta envolta em cabelos penosamente desfrisados
durante longos anos toda a firmeza das carnes subtis todo o
trigo desse abrigo adormecido toda a tempestade recolhida
nesse pedaço de noite tombaram sobre a febre quando Isabel
iniciou o striptease
E assim se deu ao tempo a recordação de uma espécie de
vento fustigando as entranhas e erguendo no ar o corpo
que ardia por dentro com sabor a mel antes de dar ao fogo
a momentânea liberdade de queimar o sonho que morre ao
longe ao pé dos coqueiros