A cultura da vinha
A vinha é uma das grandes riquezas do concelho e, pela maneira como é plantada, não prejudica as outras culturas.
A cultura da vinha, em Vale de Cambra, vem de tempos imemoriais, mas o seu verdadeiro desenvolvimento data de finais da 1ª metade do século XX.
As primitivas formas da cultura eram rudimentares e em pequena escala.
As plantações eram feitas na borda dos campos, sem qualquer regra.
As videiras eram dispostas em grupo, por vezes em número superior a seis pés, e junto a choupos, salgueiros e carvalhas, que lhes serviam de tutores.
Assim se conservavam por largos anos as vinhas de enforcado.
Mais tarde – aí por 1853 – os nossos lavradores, vendo as suas colheitas comprometidas pelo esgotamento das terras, cansadas pelos próprios tutores, e pelas doenças criptogâmicas (oídio em especial), iniciaram as primeiras medidas para defesa das suas vinhas.
Principiaram com as enxofrações e reduziram a copa dos tutores.
As enxofradeiras eram constituídas por pequenas campânulas, nas quais era depositado o enxofre, e na sua extremidade era adaptada uma pêra de borracha, a qual o expulsava por pressão.
Esta forma de tratamento era imperfeita e de difícil aplicação, havendo necessidade de subir às árvores para o executar.
As podas eram feitas com foice e podão, únicos instrumentos dessa época.
Mais tarde, com o desenvolvimento industrial, apareceram no mercado vários modelos de tesouras e enxofradeiras que facilitaram consideravelmente estas operações.
A isto se limitava o tratamento das vinhas que passaram a produzir razoavelmente, mas não dando, contudo, vinho suficiente para o consumo da pequena população dessa época.
Mais tarde veio a invasão de uma nova doença, o míldio, que reduziu consideravelmente a produção de vinho.
Só em 1897, e muito gradualmente, se principiou o tratamento com as caldas cúpricas.
Daí para cá, começou a melhorar o vinho já isento das doenças de que as uvas eram atacadas.
As plantações eram feitas com videiras de pé franco, obtidas por meio de mergulho.
As castas eram as mesmas que se cultivam hoje, com excepção de algumas.
A Vinhão, a Doçar, a Azal, a Espadeira e a Borraçal constituíam a sua maioria.
Os vinhos brancos eram o Terrantez e o Esgana-Cão.
Aí por 1898, os nossos lavradores, para se subtraírem às despesas de tratamentos, introduziram outras videiras que resultaram mais rendosas e menos sujeitas a doenças.
Principiaram a introduzir híbridos produtores directos (o lzabel e o Jacquês) que foram reproduzindo pelo processo de rebaixe ou mergulho.
Foi um erro grave. A produção dentro em pouco principiou a aumentar, mas o que é certo é que estas videiras de grande porte produziam vinho de qualidade inferior e sem cotação.
A produção era abundante, irregular e de má qualidade, e o assombramento dos terrenos acarretava também grandes prejuízos às culturas.
Em 1901, principiaram os vinhos de Cambra a ser exportados para o Brasil e França, mas era rejeitado o vinho dos produtores directos.
Esse não tinha categoria e não era exportado.
Os lavradores, tendo imperiosa necessidade de vender o vinho e vendo que era rejeitado o de qualidade inferior, tiveram de recorrer à enxertia de produtores directos e, assim, se fez a reconstituição do nosso tipo de Vinho Verde Regional.
Com o patrocínio da Ex.ma Câmara Municipal, da Presidência do Ex.mo Sr. Dr. Domingos de Almeida Brandão e de outras individualidades, conseguiu-se a entrada do nosso concelho na Região dos Vinhos Verdes.
O Decreto-Lei n.° 24.976 do Diário do Governo, n. 22- 1ª série, de 28 de Janeiro de 1935 – que tornava obrigatória a enxertia e substituição ou arrancamento de todos os produtores directos até 30 de Março de 1936, foi bem compreendido pelos nossos lavradores que voluntariamente enxertaram quase todos os produtores directos, num período relativamente curto.
Em fins de 1937 até fins de Janeiro de 1938, a V Brigada Móvel do Plantio da Vinha, com sede em Coimbra, chefiada pelo distinto Engenheiro Agrónomo, Sr. Castanheira das Neves, mandou para este concelho dois funcionários para conferir o número das videiras enxertadas e pagar aos lavradores os subsídios (de $20 por pé) a que tinham direito, nos termos do art. 5.° do Decreto-Lei n. 27.285 (Diário do Governo, n. 276- 1.ª série, de24 de Novembro de 1936).
Em 1942 tudo estava completamente remodelado.
As videiras plantadas na margem dos campos são devidamente espaçadas e alinhadas pela linha divisória das propriedades.
Os choupos, salgueiros e carvalhos, que noutros tempos se cultivavam para tutores, foram substituídos por ramadas de arame, madeira, pedra e ferro, segundo o gosto e posses de cada um e construídas segundo o modelo regional.
Além desta forma de cultura, existe já a cultura por toda a terra como nas grandes regiões vinhateiras, e não apenas só nas margens das propriedades.
Os tratamentos das vinhas são bem feitos e em dosagens convenientes.
Com todos estes cuidados e esforços dos nossos lavradores, o nosso concelho, que ainda há poucos anos não produzia vinho para o consumo local, em 1939, atingiu uma produção de 2.704.141 litros, tendo sido manifestados para venda 1.078.660 litros.
Existem já no concelho viticultores bastante instruídos para tratar convenientemente as suas vinhas e obter delas o melhor rendimento em quantidade e qualidade.
Esta cultura continua em progresso e franco desenvolvimento.
A manutenção das uvas é cuidadosamente vigiada, assim como o período fermentativo dos mostos.
Em resumo:
A nossa região, sob o ponto de vista vinícola, está passando por uma grande transformação e há indícios de que ela irá muito longe, porque se observa por toda a parte o vivo desejo de trabalhar cada vez mais e melhor. [1]
Para apoio à cultura do vinho, armazenamento e comercialização, foi criada a Adega Cooperativa de Vale de Cambra, por despacho ministerial de 18 de Abril de 1961, cujos estatutos foram publicados no Diário do Governo, n. 100, de 27 de Abril de 1901.
No concelho a comercialização dos vinhos faz-se na Adega Cooperativa, de forma directa ao público.
Para o resto do país e estrangeiro a comercialização é feita na União das Adegas Cooperativas, onde o vinho é engarrafado e comercializado com a patente de Vinho Verde: Adega Cooperativa de Vale de Cambra.
Também a ex-firma Caves Bastos e Brandão, Lda., sita no Pinheiro Manso, Vale de Cambra, foi produtora e exportadora de várias marcas de vinho verde, que obtiveram menções e medalhas de ouro em diversos concursos de vinhos de mesa engarrafados.
O vinho verde do concelho de Vale de Cambra é bem conhecido em todo país, principalmente nos mercados do sul, e a sua fama deve-se à excelente qualidade e não a reclames ou cartazes aparatosos.
Os cachos, que as videiras de Vale de Cambra produzem, dão um vinho verde de qualidade superior, com características que o tornam inconfundível e não receia confronto: é aromático, de delicioso paladar e refrescante.
Há também vinho verde branco, de fina qualidade.
Engarrafado nos princípios da Primavera, torna-se espumoso e adquire um paladar mais agradável.
Expedido para o estrangeiro, chega a qualquer continente em boas condições.
A produção tem aumentado consideravelmente e melhorado em qualidade, mas há ainda muito a fazer para atingir a quantidade que o concelho pode produzir. [2]
O vinho
Em Vale de Cambra os campos estão adornados com videiras, armadas em latadas e ramadas. [1]
A primeira grande operação anual consiste na poda da vinha, no inverno, entre Novembro e Fevereiro.
Os podadores, munidos de tesouras de poda com mola, cortam ramos e gomos para melhor fazerem frutificar a videira.
Os ramos podados atam-se aos arames das ramadas altas com ráfia. E no despontar da primavera, os pequenos rebentos começam a sair para a luz do dia.
A vinha era sulfatada com sulfato de cobre dissolvido em água juntamente com cal, para combater o míldio, utilizando-se sulfatadores manuais de cobre, presos aos ombros por duas correias de couro, uma das quais – a direita – engatava na parte basal por intermédio de um gancho.
O líquido entrava no depósito do sulfatador passando por um filtro, também de cobre, e era depois pressionado a sair por meio de uma bomba accionada com auxílio de uma alavanca puxada para cima e para baixo com a mão esquerda; a direita pegava na vara metálica, de cuja ponta saía o sulfato à pressão, o qual era pulverizado por cima e por baixo das folhas e cachos.
Era ainda necessário proceder ao enxoframento no combate ao oídio, logo que os cachos começassem a escarumar (perder as florzinhas); esta operação fazia-se com um enxofrador que, antigamente, era um fole arredondado ou oblongo com duas pegas e um depósito onde se colocava a flor do enxofre, a polvilhar sobre as videiras através de um orifício na extremidade pontiaguda.
Estes tratamentos eram e ainda o são agora, pôr mistura do enxofre na calda bordalesa e não mais por enxofradores – feitos em regra por três vezes, até que a uva começasse a “pintar, ou seja, tingir ou colorir.
Por finais de Setembro se aprazava a vindima, tão logo se antecipasse que os cachos atingiriam a máxima maturação: pedúnculo já passado de verde a castanho, bagos de pele fina e transparente.
Havia agitação desde o nascer da aurora nesses dias de vindima: comida a aprontar para os vindimadores ajudantes, tesouras, escadas de madeira e cestos de vime preparados para a operação.
Os cachos eram cortados por adultos que subiam as escadas para o efeito e colocados em cabazes pendurados na ramada e depois despejados nos cestos de vime, os quais eram transportados à cabeça pelas mulheres directamente ao lagar ou até aos carros de bois, se a vinha ficasse longe de casa, e daí para o lagar.
A canalha ficava no chão a apanhar bagos. Da vindima ficavam sempre carrapiços (pequenos cachos ou parte de cachos) que escapavam aos vindimadores e eram, mais tarde, apanhados pelas crianças, no rebusco, com uma “esgalha”. [2]
No lagar cheio de uvas a faltar 20 cm de altura, …homens de calção ou calça arregaçada até às virilhas, mãos seguras no varal de madeira, começavam a pisa feita com os pés descalços, depois de lavados numa bacia colocada no chão à entrada do lagar, num movimento de pernas dobradas no joelho, para cima e para baixo, a moer, a catar os bagos e a espremer os mesmos entre a sola e o fundo lajeado do lagar.
O sumo ia-se expressando no aroma quente e frutado que se evolava no ar. Os homens trocavam piadas picantes, e os que para isso tinham jeito contavam anedotas.
De vez em quando mudavam-se de um lado para outro para que todos os pés tivessem a oportunidade de pisar todos os sectores do lagar e se não entrasse na monotonia.
A pisa durava umas duas horas.
A fermentação dava-se em alguns dias; ouvia-se distintamente a balsa a ferver e a subir, ficando no topo o bagaço, composto pelos pedúnculos do cacho (engaço) grainha (semente) e película (pele) das uvas e, por baixo, o vinho em estado incipiente, já doce ao fim de 24 ou 48 horas – dependendo da evolução do mosto.
Vinham, então, dois ou três homens repisar e mexer a balsa, após o que a mesma ficava por mais um ou dois dias a aprimorar a qualidade através de mais fermentação.
Assim que a balsa levantasse de novo, o vinho ficava pronto a ser bombeado da dorna para os pipos de madeira de castanho, eucalipto ou carvalho – previamente raspados e mechados com uma tira de papel impregnado de enxofre que se queimava pendurada no batoque do pipo por um gancho para fazer consumir o oxigénio e substituí-lo por anidrido sulfuroso, que é tóxico para os bolores – onde continuava a fermentar.
Os pipos eram arrolhados só no dia de S. Martinho quando, por tradição, se ia à adega provar o vinho:
“Pelo S. Martinho, prova o teu vinho, no cabo do ano, já te não faz dano.”
O bagaço passava, então, pela prensa, onde era espremido para se aproveitar toda a cor das peles da uva e mais uns litros de vinho que ficava embebido no mesmo.
Dizia-se que era este acrescento que ia dar força ou vida ao vinho.
A prensa clássica tinha um fuso de ferro no meio e era constituído por aduelas de madeira em duas ou mais secções que fechavam em cilindro; pranchas de madeira eram colocadas sobre o bagaço e a parte superior, em ferro, funcionava com cunhas que iam saltando de buraco em buraco, à medida que o homem ia movendo a alavanca para trás e para a frente, deste modo comprimindo lentamente o bagaço; a base era feita em laje (ou madeira nas portáteis) com um sulco à volta para onde escorria o vinho, o qual desaguava em bica para dentro de uma vasilha.
O bagaço era, ainda, “escardiçado” para desencaroçar e, de novo, metido na prensa para a espremedura final.
Quando se queria descomprimir e abrir a prensa, rodavam-se as cunhas ao contrário.
O bagaço espremido ia, por fim, terminar o ciclo no alambique, onde era aquecido a lenha em vaso de cobre, libertando vapores que, resfriados em serpentina também de cobre, passavam ao estado líquido: era a genuína aguardente bagaceira.
Cada cesto de bagaço dava direito a um quartilho de aguardente… [3]
- Pinho, Joaquim José de, in A Voz de Cambra, Ano XXXIII, n. 777, de 25 de Fevereiro de 2004[]
- Ferreira, António Martins, Vale de Cambra, 1942[]
- A Voz de Cambra, Ano XXXIII, n.778, de 10 de Março de 2004[]
Notas de rodapé | |
↑1 | A latada só tem um fio de arame por onde a videira se estende e a ramada tem, pelo menos, cinco arames. |
---|---|
↑2 | Pau comprido ou cana com um corte numa das extremidades, mantido aberto com uma espécie de pequena cunha. |