Uma Devoção

por António Ayres Martins

Uma Devoção

Chegando à terra natal, teve o ilustre cidadão ensejo de observar o quanto estava transformado o antigo logarejo que lhe fôra berço, bem como a toda a sua família.

Comtudo, para rematar a série de transformações iniciadas, alguns melhoramentos se tornavam de uma necessidade imperiosa; e entre os trabalhos que por sua importância reclamavam execução imediata, devemos apontar uma grande ponte sobre o rio Vigues, a qual ligando as povoações de Coelhosa com o importante logar de Arêas, formava uma das principaes vias de communicação entre os habitantes do norte do rio Caima e o restante da grande freguezia de Castellões.

Todavia essa ponte, tão útil como necessaria, havia sido desmoronada por uma cheia impetuosa do rio.

Governo e Municipalidade, ou por falta dos recursos necessários ou por desleixo de quem administra este género de trabalhos; nunca ligaram importancia ao facto, deixando correr á reveliai tantos interesses, que se perdiam por falta de iniciativa.

Em taes condições, estava interrompido quasi todo o trânsito por aquelle ramal da estrada, pois o defeituoso pontilhão de madeira que servia de passagem aos viadantes, não permittia, o transporte de carros – tal era o seu frouxo estado de solidez.

Em vista d’isto, tratou o sr. Martins de remediar o mal, e para esse fim, pondo de parte influencias locaes, que para nada podiam servir, dirigiu-se pessoalmente ao sr. ministro das obras públicas, ao qual expoz, com a maior claresa, a imprescindivel necessidade da reconstrucção da ponte.

O dignissimo ministro, levando em conta a proposta do sr. Martins, que expontaneamente offereceu a quantia de quinhentos mil reis para ajuda de tao importante melhoramento, ordenou immediatamente o início dos trabalhos.

E para detalhes mais circumstanciados, para aqui trasladamos uma bem elaborada correspondencia do Primeiro de Janeiro, que poz em relevo tamanho serviço prestado á sua terra natal por um dos seus mais dilectos filhos:

9 DE DEZEMBRO, DE 1898
«Vae tambem começar brevemente a reconstrucção da ponte da Coelhosa (Cambra) sobre o rio Vigues, que há mais de doze annos fora arrebatada pela cheia, melhoramento que, apesar da sua instante necessidade, ainda os povos d’aquella localidade não tinham podido conseguir dos governos, talvez pelas condicções precarias do thesouro.

O nosso amigo, o sr. José Antonio Martins, benemerito cidadấo que há pouco regressou do Brazil, onde pelo seu honrado trabalho e honradez conquistou uma posição invejavel, vendo que sem o auxilio particular aquella obra se não fazia, procurou em Lisboa o dignissimo ministro das obras públicas, e depois de lhe expor a urgente necessidade da ponte, offereceu ao governo, para ajuda da sua construcção, a importante quantia de 500 000 reis, que foi logo aceite, ordenando o sr. ministro a immediata reconstrucção da ponte.

Os habitantes da freguezia de Castellões, sabendo que o sr. Martins regressva com sua ex.ma familia no dia 1 do corrente a sua casa de Coelhosa, cotisaram-se para o receberem festivamente afim de lhe demonstrarem o seu reconhecimento, e assim, á sua chegada, foi elle surprehendido pelos hymnos festivos da philarmonica de Cambra, e pelo estrondear de morteiros e foguetes.

Uma commissão dos mais importantes individuos de Castellões foi cumprimentá-lo, sendo-lhe n’essa occasião lançadas muitas petalas de flôres.

Os festejos prolongaren-se por todo o dia, terminando já de noite.

O sr. Martins, com a bonhomia que o caracterisa, agradeceu, commovido, aquella espontanea manifestação, que elle disse julgava immerecida.

A expensas do mesmo cavalheiro está sendo arborisado o largo da capella de N. S. da Saúde, e vae ser construída uma capella e um chafariz publico, em CoeIhosa, para o que o sr. Martins já adquiriu o terreno necessário.

Actos d’esta natureza são dignos de todo o elogio, e por isso acertadamente procederam os habitantes de Castellões, tributando ao seu benemerito conterrâneo a sua gratidão e simpathia.»

Como se vê, foi necessario fazer a acquisição do terreno para a construcção do novo templo, porque no local preferido pelo sr. Martins, não havia espaço bastante que se prestasse para esse fim.

É verdade que a antiga capella, uma vez demolida, deixava logar para outro prédio; porém não era sobre os alicerces do templo desmoronado que o benemerito cidadão tencionava erigir outro templo.

Era necessário espaço mais amplo e, sobretudo, posição mais vantajosa, capaz de mostrar à distância o fructo carinhoso d’uma sincera devoção.

Por estas rasões, foi necessario fazer algumas expropriações, demolindo-se alguns casebres, que do lado opposto da estrada defrontavam com os chalets do sr. Abilio Pina.

Effectuaram-se as demolições precisas, aterrou-se a extensa leira do terreno obtido, e assim se construiu o bello arraial que circunda a esplendida capella.

Para isso, foi preciso dispender para mais de quinhentos mil reis, somma que não deve ser exagerada, attentas ás condições em que o terreno se encontrava.

Escolhido o local apropriado para o edificio, tratou o sr. Martins de proceder á cerimonia da collocação da primeira pedra, o que se effectuou com a maior pompa e brilhantismo.

A convite do prestimoso cidadão, compareceram no logar de Coelhosa quasi todas as pessoas gradas do concelho de Cambra, inclusivé as auctoridades administrativas e municipaes.

E para narrar esse acto solemne, melhor do que nós falará o documento que n’este logar trasladamos – documento que nos foi confiado pelo próprio sr. Martins:

«Nos três dias do mez de septembro do anno de 1899, da era christã, sob o pontificado de Leão XIII, sendo rei de Portugal D. Carlos I da Casa de Bragança, Bispo do Porto D. António de Sousa Barroso e Parocho collado de S. Pedro de. Castellões, Thomaz Ferreira Gomes de Pinho, no logar de Coelhosa, freguezia de Castellões, concelho de Macieira de Cambra, Comarca de Oliveira de Azemeis, Districto de Aveiro, procedeu-se, com a devida auctorisação, á benção e collocação da primeira pedra d’esta capella, mandada construir a expensas do benemérito cidadão José António Martins, d’este logar de, Coelhosa, á qual foi dado o título de S. Gonçalo : – procedendo-se em tudo conforme o rito e costume da nossa Egreja e Reino que em taes casos se observam.

Foi feita a benção pelo dito parocho com a assistência das auctoridades
administrativas e parochiaes infra assignadas.

E para chegar ao conhecimento dos nossos vindouros, lavrou-se este auto em duplicado, assignado por todas as pessoas presentes que sabem escrever, depois de encerrado em um objecto de vidro, devidamente lacrado, na sob soleira da porta principal pelos Ex.mos Srs. administrador d’este concelho e presidente da Câmara Municipal, e juntamente o seguinte:

Moeda corrente em prata e cobre, d’este Reino;
Nickel e cobre, dos Estados Unidos do Brazil;
Diversos jornaes n’esta época publicados.

AUCTORIDADES

Parocho, Thomaz Ferreira Gomes de Pinho
Administrador do Concelho, Rodrigo José Velloso
Presidente da Camara, Thomaz António Ferreira
Vice Presidente da Câmara, Manoel Tavares de Amorim

  • Facultativo municipal, António Corrêa do Amaral.
  • Juiz de Paz, Norberto António Tavares de Almeida
  • Regedor substituto, Abel Tavares de Almeida

OS BENEMÉRITOS
José Antonio Martins
Alzira d’Oliveira Martins
José António Martins Junior
Alzira d’Oliveira Martins Filha

CLERO

P. Joaquim Manoel Tavares
P. Caetano Tavares de Almeida
Luiz Corrêa Vaz de Aguiar

DIGNITÁRIOS

José Gomes de Almeida. – João Tavares de Mattos. – Manoel Joaquim de Mattos. – João Tavares Alves,
cabo reformado da armada. – Joaquim José de Pinho. – Antonio Teixeira de Valle Quaresma. – Thomaz Barbosa Abrantes. – Augusto Alves Martins. – Manoel Augusto da Silva. – João de Pinho da Cruz. – Manoel de Almeida. – Joaquim Manoel Tavares. – Joaquim Ribeiro
Barroso. – Manoel Joaquim. – Antonio Ferreira da Costa de Aveiro. – Manoel Martins. – Manoel Tavares Alves. – Manoel Martins de Pinho. – Antonio Leite. – José Fernandes. – Joaquim Henrique de Pinho. – Marcellino da Silva Ribeiro. – Julio Nunes de Pinho. – Virgulino Henrique Tavares de Almeida. – Manoel Soares Alves. – Manoel Henriques Gonçalves. – Manoel Amorim de
Aguiar. – Serafim Dias Martins, Regente da Philarmonica de S. João da Madeira. – Manoel Tavares de Almeida Xisto. – Manoel Rodrigues Callado. – Joaquim Martins de Pinho. – Manoel Martins de Pinho Junior. – Manoel Augusto da Silva Marques.

Assim ficou encerrado o presente auto que eu, Manoel Nunes de Pinho, escrivão de paz e tabellião,
que o escrevi e assigno.

Manoel Nunes de Pinho

Inútil seria acrescentar que o festejo se prolongou por todo o dia; tocando ininterruptamente a bem organisada philarmonica de S. João da Madeira, a qual, por entre o estrondear dos foguetes e as ondulações caprichosas das flammulas e dos galhardetes que ornamentavam o local onde se iniciavam os trabalhos de construcção, desferia as notas alegres de bellas e harmoniosas peças musicaes.