Ferreira de Castro, um pouco de nós

Ferreira de Castro, um pouco de nós

O que escreveu Ferreira de Castro sobre Vale de Cambra

Ferreira de Castro, um pouco de nós

Ao cimo da encosta termina o concelho de Azeméis e começa o de Cambra. Em frente, está o lugar das Baralhas; à esquerda, um ramal da estrada para a aldeia das Cavadas; à direita, sinuosa vereda.

Por ela, mau grado a sua rudeza, deve seguir quem quiser relacionar-se com o passado da região, pois no monte próximo ergueu-se o crasto de Ossela. Entre pinheiros e bravos penedais cobrem-se algumas centenas de metros.

Na colina, outrora cheia de lares, de muralhas e de armas bélicas, existe agora somente pinheiros, tojo e soledade.

Nas rochas, tão trilhadas há milhentos anos, os olhos buscam uma pegada impossível e só vêem indolentes sardões expondo ao solos seus verdes e os seus oiros. Mas este próprio abandono, este próprio silêncio que se pega à terra de onde a vida humana desapareceu, torna mais sugestiva, mais profunda, a áspera paisagem.

Chega-se, enfim, ao topo do outeiro. Lá se ergue uma ermida com o seu pequeno adro. E sempre o mesmo silêncio, a mesma solidão. Em baixo, corre o Caima, entre escuros fraguedos. E, na banda oposta, levanta-se outro monte, depois a serrania. O Passado está sob esta terra nua do adro e nas declividades da colina.

Nós próprios o vimos, éramos ainda criança – mas vimo-lo. Foi em 1908. O Museu Municipal do Porto mandou fazer escavações neste cêrro. As picaretas trabalharam dias seguidos, sob os olhos do poviléu das redondezas, que acudia em massa, julgando tratar-se de pesquisa a fabulosos tesouros. É que, anos antes, em Fevereiro de 1896, nas Baralhas, aqui pertinho, um sapateiro encontrara, ao abrir os alicerces para um muro, dezasseis manilhas de oiro, trabalho pré-romano, que lhe valeram uma riqueza e deram brado entre os arqueólogos.

Ferreira de Castro, um pouco de nós

O crasto de Ossela reservava, porém, surpresas de outra ordem. Levantadas as primeiras camadas de terra, em breve se ofereciam, aos olhos dos escavadores, várias sepulturas, feitas de lajes, numa das quais se ostentava ainda um crânio. Mais fundo, havia ruínas de edifícios antiquíssimos e exibiam-se restos de muralhas, mais remotas ainda. Moedas de outrora, romanas e lusitanas, fragmentos de cerâmica de várias épocas, fíbulas, pedaços de vidro e de bronze, outros destroços, jaziam na terra. Do encontrado concluiu-se que o morro, estação pré-romana, fora habitado e defendido por diversas raças, ao longo dos séculos. Quando fortificado, devia ter tido duas ou três ordens de muralhas e, dentro, casas dos habitantes.

Depois destas escavações, a terra, que não foi toda explorada, voltou a fechar-se e assim se encontra, rasa, sobre as suas velhas sepulturas de lajes, até que um dia outras picaretas venham buscar nos declives do morro o mais que ele guarde ainda no seu silêncio e neste abandono a que a melancólica ermida parece fazer sentinela.

De regresso à estrada, vê-se, logo adiante das Baralhas, panorama de pasmar. É o Vale de Cambra. Quase ignorado até há pouco, a sua beleza adquire, dia a dia, maior renome. Cercado de montanhas de formas extravagantes, não é fácil descortinar em Portugal outro mais grandioso e espectacular. Quase não tem planos.

A vista desce para a imensa cavidade onde refulgem o Caima e o Vigues; erra entre os campos agricultados e, depois, encontra, lá longe, o contraforte das serranias, onde branquejam dispersas aldeias, humildes casitas. A terra é verde e o céu é azul; é tudo verde e azul com raras pintas brancas do casaredo, que mais do que moradias dos homens parecem janelas da própria paisagem. Ao crepúsculo, porém, o grande vale sofre metamorfose, torna-se polícromo – e as suas cores separam-se, aqui, muito nítidas, e dissolvem-se e confundem-se além, num encanto visual indescritível.

Nas noites de luar, quando o grande balão de oiro surge na lomba das montanhas, o vale enche-se de magia, dum sortilégio que paira desde os píncaros às águas sussurrantes do Caima. De manhã, é o milagre. Todos os dias há um milagre de luz sobre a terra quando o sol nasce em Vale de Cambra.

O espectáculo majestoso pode ser contemplado da estrada, onde há um miradouro próprio. E pode sê-lo, também, da quinta da Bela Vista, proeminência onde um homem de bom gosto, o Sr. António Tavares da Fonseca, mandou edificar uma casa, cujas portas se abrem, gentilmente, aos forasteiros que desejem admirar dos seus terraços, erguidos em sítio eleito, este panorama excelso.

Ferreira de Castro, um pouco de nós

A estrada desce e entra em Pinheiro Manso, burgo asseado e muito branco, já com os seus ares de urbanismo e de modernidade. Estamos no mundo da manteiga, na região de lacticínios mais importante de Portugal. O leite vem quase todo das serras, como as águas que irrigam o vale e, transformado aqui, corre o país inteiro.

Um ramal avança para Castelões, velha freguesia, com algumas vetustas moradias e o seu cemitério e a sua igreja, postos em sítio airoso. Sugestão romântica, melancólica embora, não é porém a ideia de morte que nos sai, aqui, ao caminho e sim uma ideia de comunhão ilimitada e eterna com a natureza bela que nos cerca, com o sol que prateia as vinhas e os pinhais, os jardins e as vertentes dormindo em silêncio.

Estamos já ao pé da serra que se levanta por detrás de Castelões, fechando o Vale de Cambra. E no seu pico ergue-se a Senhora da Saúde, ermida até há pouco, recentemente templo maior, acompanhado por um albergue. Para a festa que, lá em cima, se celebra todos os anos, começam a passar aqui, na madrugada de 14 de Agosto, verdadeiras multidões. Vem gente da beira-mar, a muitas léguas de lonjura, vem gente de todos os concelhos próximos, das montanhas vizinhas e das montanhas distantes – e até do Porto e Coimbra gente vem.

Desde as regiões vareiras às regiões de Arouca, não há estrada nem sinuoso atalho onde neste dia não se projecte a sombra dos romeiros a caminho da Senhora da Saúde. Empregam todos os veículos: a tartana remota, que se julga tirada de museu, a diligência de há tantos anos, carroças, tipóias, carros de bois engalanados, camionetas e automóveis. A maioria vai a pé e a pé nu – que a festa nasceu humilde como a capelita primitiva e é, sobretudo, para gente de pé descalço. Lá vão elas com os pés grandes sobre o pó dos caminhos, a saia nova a bater-lhes na barriga das pernas; sobre a blusa de cor, estreada agora também, os oiros do povo; nas orelhas as arrecadas e, sobre a cabeça, um cesto com o farnel. Ao lado vão eles.

Como ganham mais dinheiro do que elas, compraram sapatos para este dia; levam cavaquinhos, harmónicas, violas e, desde madrugada alta, começam a cantar por todos os caminhos. Chegados à ermida, não entram, que já viram da primeira vez que ali vieram e a festa é mais pagã do que outra coisa. O píncaro está cheio de bandeirolas, de vendedores de quinquilharias coloridas, de frutas estivais, de chitas das mulheres; não há maior cromatismo em parte alguma, nem bulício maior. Eles e elas pousam o farnel debaixo do velho carvalho, na vizinhança dum carro de bois com a pipa de vinho em riba, e logo desatam a bailar, não acompanhando a música da filarmónica de Cambra, e sim a dos milhares de instrumentos populares que os romeiros levam. Bailam, cantam, suam, e comem durante o dia inteiro.

À noitinha, as chitas das raparigas, depois do sol e do suor, desbotaram levemente; mas elas e eles compram plumas tingidas e estampas polícromas; colocam-nas no peito e no chapéu e, assim adornados, iniciam a descida da serra, sempre a cantar e a bailar, enquanto outros, dispondo de maiores ócios, gastam a noite a fazer a mesma coisa no arraial. E cantando aqui, parando ali para o bailarico, fazem léguas e léguas, até que a voz do oceano, lá para as terras de Ovar, se sobreponha à voz deles e delas, ou o silêncio das montanhas arouquesas lhes lembre que chegaram a casa – às preocupações da vida, ao árduo trabalho pelo magro pão de cada dia.

DO GUIA DE PORTUGAL 

Por que escreveu Ferreira de Castro no Guia de Portugal?

Guia de Portugal nasceu das novas necessidades do turismo e destinava-se a preencher uma lacuna do panorama editorial nacional, não se limitando ao enunciar tradicional do conjunto de informações úteis ao viajante culto.

O objectivo da obra era mais vasto e mais exigente, pois procurava contribuir para a formação de cada cidadão através da revelação de um “outro” Portugal tão próximo e, simultaneamente, tão distante do quotidiano existencial de cada português.

A “descoberta” da realidade essencial do país implicava a identificação de cada um com o património histórico e geográfico pátrio. A viagem física pelo território nacional era, ao mesmo tempo, uma viagem espiritual que permitia descobrir uma memória colectiva e fazer a aprendizagem do significado mais profundo da pátria, na linha da pedagogia política do movimento “Seara Nova” da Primeira República Portuguesa.

Júlio Joaquim da Costa Rodrigues da Silva
Universidade Lusíada de Lisboa

Vida e Obra de Ferreira de Castro

Roteiro O Vale Mágico por Ferreira de Castro

Ferreira de Castro, um pouco de nós
1 – Miradouro das Baralhas

Ferreira de Castro, um pouco de nós
2 – Pinheiro Manso

Ferreira de Castro, um pouco de nós
3 – São Pedro de Castelões

Ferreira de Castro, um pouco de nós
4 – Senhora da Saúde, Gestoso, S. Pedro de Castelões

Ferreira de Castro, um pouco de nós
5 – Praça da República, Macieira de Cambra

Ferreira de Castro, um pouco de nós
6 – Jardim Anna Horvath, Macieira de Cambra

Ferreira de Castro, um pouco de nós
7 – Igreja de Rôge

“Vale de Cambra abre aqui uma janela que parecia querer fechar-se.“

Abre-a em nome de Ferreira de Castro e em nome de todos aqueles que hoje vão redescobrir um vale contado pelo romancista que se despojou de qualquer argumento ficcional para nos descrever o que os seus olhos viram e o que o seu coração sentiu por um Vale que também era seu!

Ferreira de Castro viu dessa janela um Vale Mágico, uma terra cercada de montanhas de formas extravagantes…onde tudo é verde e azul e é aqui que recuámos a um tempo outro que já deixou de ser mas que também se deixou escrever e, por isso, será sempre revivido nessas narrativas só possíveis pela mão de quem, como nós, se apaixonou por este Vale.

Os trilhos que aqui percorreu, pontuados com as suas descrições tão pitorescas que nos levam de volta a um tempo em que o bucólico contrasta com a azáfama de um vale em pleno crescimento industrial, trazem-nos um Roteiro sustentado em duas narrativas de viagem: uma, a partir do Guia de Portugal, onde Ferreira de Castro descreve o percurso entre o miradouro das Baralhas e a Nossa Senhora da Saúde; e outra, entre Macieira de Cambra e Rôge, publicada pela Revista Semestral da Junta Distrital de Aveiro, intitulada Velha Macieira de Cambra, Sempre Jovem.

Um património literário perpetuado ao longo deste Roteiro, que mostra os pontos onde Ferreira de Castro mais se demorou e, agora, mais do que excertos, parecem companheiros de uma viagem que começa aqui.

Percorra-o também, mas antes de disso: Conheça-o melhor aqui

Município de Vale de Cambra / O Vale Mágico Por Ferreira de Castro (cm-valedecambra.pt)