Contos e Lendas da Anta
(Parcialmente publicado na Voz de Cambra, edições de 2ª Julho e 1ª Outubro de 2014, com o título: – Vilar: – Lendas da Anta).
Introdução.
Lá no cimo do monte, na Anta, passava e era bastante concorrida de gentes a estrada dos almocreves e caramuleiros.
Vinha dos lados de Sever do Vouga e ligava o S. Tiago do Arestal(1) ao da Felgueira, atravessando o Falcão. Juntava-se lá mais a riba, na Freita, ao itinerário romano que ligava Viseu ao Porto.
Foi utilizada até finais da década de quarenta, do século que findou, altura em que foram rasgadas as novas vias terrestres asfaltadas.
A nossa mãe, nascida em 1920, contava-nos que em jovem, enquanto adueira de gado, se lembrava de ver transitar por lá os bufarinheiros e outros passantes.
Muitos destes comerciantes seriam naturais das aldeias do Caramulo, serra que fica fronteira à do Arestal, na margem esquerda do rio Vouga, lá para as bandas da auto-estrada A-25, dos tempos presentes.
Mais abaixo, pelas imediações de Sever passava, desde sempre, “a estrada do peixe” que ia de Aveiro a Viseu e na qual a dos caramuleiros entroncava.
Era por ali, pela Anta, que circulavam as mercadorias de e para o cimo da Serra da Freita, com especial ênfase na altura do minério e da 2ª Guerra Mundial.
Não admira, por isso, que atraísse algum banditismo e conflitualidade(2), sobretudo assaltos, eventualmente com assassinatos. Eis, alguns desses relatos e/ou lendas, que a nossa pena registou:
UM ROUBO NA ANTA – Lenda
Certo dia, circulava pela “estrada da Anta” um homem que levava, num alforge, uma avultada quantia em dinheiro. Fala-se, ainda hoje, que a mesma rondaria os quarenta contos de réis.
Um dos moradores, de uma das aldeias vizinhas da via, assalta o indivíduo e rouba-lhe o numerário.
A vitima, prevendo que o gatuno o mataria, implora-lhe que não cometa tão hediondo crime. Vendo, contudo, que o ladrão mantinha o gesto e a intenção de o assassinar, profetiza:
– “Se me matares os feitos(3), vão ser as minhas testemunhas“.
Como estavam sós, junto ao pico da montanha, o camponês não se intimida e consuma o homicídio.
Entretanto, com o dinheiro roubado, o homem comprou várias propriedades, entre elas uma cavada na Anta, próxima do local do crime.
Decorridos vários anos, o dito sujeito andava lá com a mulher a apanhar carquejas. Nisto, os “feitos” começaram a tremer, sem que soprasse qualquer brisa. Mexiam-se tanto que a esposa achou aquilo muito estranho.
Vai daí, começa a interrogar o marido, sobre a razão de não haver vento e as referidas plantas tremerem.
Perguntou-lhe ainda se ele não estaria em pecado ou se teria contas a ajustar com Deus; já que, por parte dela, se encontrava de consciência tranquila.
Embora dando ares de comprometido, o cônjuge lá foi desviando a conversa, para assuntos fúteis.
No entanto, decorrido algum tempo, cheio de remorsos, confessa-lhe que sim, que tinha grandes culpas; pois que, anos antes, ali havia morto um homem.
Conta-lhe ainda que o motivo foi o roubo de importante quantia de dinheiro, aquele que permitiu adquirir as terrras de pão aos brasileiros lá do lugar.
Regressada a casa, a mulher enche-se de coragem, dirige-se às autoridades e apresenta queixa do marido. Este, foi presente às justiças e cumpriu pesada pena.
Conclusão:
– Fez-se justiça. A profecia cumpriu-se.
A MORTE, NA ANTA, DO GAROTO TRAQUINAS – Lenda
Outra história ouvida com muita frequência e destinada a ser contada aos miúdos, com o intuito de os educar no sentido de respeitarem os adultos, passou-se também por aqueles lados.
Era verão e um garoto, talvez da Requeixada, apascentava o seu rebanho de cabras e ovelhas, junto à Poça dos Cravos, nas proximidades da estrada.
Nisto, vê surgir, lá ao longe, um caramuleiro/almocreve com as suas pachorrentas alimárias carregadas de mercadorias.
Como se encontrava cheio de tédio, por não ter naquele dia companhia com quem brincar, decide abeirar-se do caminhante e provocá-lo, da seguinte maneira:
“Almocreve que vais na estrada, Filho da p. … , corno de cabra“.
Era este recoveiro pouco dado a conflitos. Sabendo, contudo, que, mais atrás, vinha um outro com fama e proveito de briguento, aconselha o petiz a ter a mesma atitude para com o seu colega.
Entusiasmado, o rapaz espera pela chegada do novo viajante e assim que ele passa junto de si, enche-se de coragem e insulta-o.
Estupefacto, com a atitude do garoto, responde-lhe:
– “Ó meu menino, repete lá isso, outra vez!”.
O rapazito não é de meias medidas e volta a dizer: –
– “Almocreve que vais na estrada, Filho da p. … , corno de cabra“.
Enraivecido, o caminheiro, dá um pulo, agarra o miúdo pelas pernas e esgaça-o de cima abaixo; tendo provocado, desta maneira, a sua morte violenta.
A partir de então, todos os jovens pastores ficaram de sobreaviso e nunca mais injuriaram os transeuntes da via, caramuleiros ou não.
A MULHER, O AMANTE E A MORTE DO MARIDO – Lenda
Estava-se em plena II Guerra Mundial e um homem tinha ido trabalhar para as minas de volfrâmio, lá para os lados do Vale da Sardeira.
Trabalhador incansável que era poucas vezes vinha a casa, até pela distância que tinha de percorrer, a pé.
Porém, quando se lhe acabava a broa, calçava as botas e lá retornava, de tempos a tempos, à procura de alimentos. Apesar das ausências, de tão cansado que andava, pouca atenção prestava à esposa.
Não contente, quer com o afastamento do marido, quer com o pouco interesse afectuoso que ele agora lhe dedicava, a mulher enche-se de coragem e passa a ter uma relação amorosa ilícita, com um vizinho.
Tudo corria bem, quando o esposo se deixava ficar por lá, pela Serra, durante semanas. Só que, quando ele voltava ao domicílio, tornava-se-lhe difícil conviver com os dois.
Vai daí instiga o amante para que mate o marido, num dos seus regressos. Aquele, não é de meias medidas e passa à acção.
Assim, sabendo que o forasteiro viajava pela Anta (4), espera-o ao cair da noite e mata-o, junto à Cumieira.
Diz-se, a propósito deste caso, que, na parede do lado direito da estrada – sentido Falcão-Felgueira – há uma pedra com uma cruz, sinalizando o local do crime.
Seguindo a lenda, visitamos recentemente o local e vimos, esculpida numa pedra – situada aí a meio do trajecto, entre o estradão e o ponto mais alto da antiga via – aquilo que parece ser uma pequena cruz; mas que, devido ao excesso de luz, a nossa máquina fotográfica não conseguiu captar.
ANOTAÇÕES:
(1) – Realiza-se aqui, junto à ermida – confluência dos concelhos de Vale de Cambra e de Sever do Vouga – uma feira anual de gado, desde 1856. Vidé, artigo de Marco Pereira, in, VC da 1ª quinzena de Setembro de 2014.
À feira e ao arraial, a 25 de Julho, nos tempos recentes, se tem referido várias vezes no mesmo quinzenário o Sr. Junqueira, seu colaborador. A ermida já existia em 1758 (in, Memória Paroquial de Junqueira).
A imagem do S. Tiago é de calcário, oficina coimbrã, séc. XV. (in, Inventário Artístico de Portugal. Junqueira). O local tem estrada, desde 1936.
(2) – Ver a este propósito o Jornal de Cambra, nº 153 do ano de 1935; em que dois transeuntes foram agredidos por desconhecidos na Felgueira.
. Sobre os caramuleiros, ver também a resenha histórica da freguesia de Chave – Arouca, disponível na Internet, em 2016.
(3) – O mesmo que fetos.
(4) – O trajecto dos caminheiros coincidiria com o actual estradão e divisão do monte, aí pelos anos vinte do século que findou. Aquilo a que os habitantes chamavam “estrada dos caramuleiros” não seria mais do que um carreiro, por onde circulavam pessoas e alimárias.
(continua)