por António Ayres Martins
Durante os dois annos que decorreram, desde o lançamento da pedra fundamental até os retoques dos ultimos trabalhos no templo, não cessaram os operarios de desenvolver a maior actividade, pois o benemerito constructor, tendo sempre em vista entregar o edificio á jurisdicção da Junta Parochial, certamente não desejava adiar para muito tarde este acto de philantrópica devoção.
Attendendo-se, pois, ás difficuldades que era necessario vencer, mormente n’um logar de tão escassos recursos, não se poderia rasoavelmente exigir, nem mais energia, se propoz dotar a sua terra natal com um melhoramento espiritual tão importante.
É certo que decorreram dois annos durante a construcção do templo, se contarmos, em mezes redondos, o tempo que mediou entre o dia 3 de setembro de 1899 e 24 de agosto de 1902; mas é tambem evidente que muito antes d’esta ultima data, já a construcção do templo estava terminada.
Muitos dias antes da festividade que vamos descrever, a traços largos e imperfeitos, tivemos occasião de examinar attentamente o estado do edificio, e podemos affirmar que tanto no exteriorcomo no interior, todos os trabalhos se achavam ultimados.
Soubemos então que se preparava uma grande festividade para o dia 24 de agosto, data solemnemente determinada pelo sr. Martins.
Com effeito, dias depois, quem percorresse o trecho da estrada que atravessa o logar de Pinheiro Manso, em toda a sua extensão, podia observar que se desenvolvia enorme actividade na ornamentação de todas as circumvisinhanças do novo templo.
Assim, logo no principio da povoação, isto é, no ponto do crusamento das duas estradas, estavam em construccão dois elegantes coretos que deviam alojar, durante os festejos, as philarmonicas da Carregosa e de S. João da Madeira.
Descendo-se á estrada, em direcção á capella, via-se aos lados, em duas fileiras compactas e ininterruptas, grande numero de esteios ostentando lindos escudos, onde se liam nomes apropriados ao fim a que eram destinados.
De lado a lado, cordas transversaes deixavam pender innumeros balões, de varias côres, e no alto de mastros, engrinaldados de murta, fluctuavam bandeiras e galhardetes.
No perimetro do grande arraial tambem não era menor a actividade dos negociantes e mercadores que, á porfia, dispunham em ordem as suas barracas, afim de atrahir a avidez dos festeiros, durante os tres dias do folguedo, sobretudo dos bons devotos de Baccho.
O esplendido palacete do sr. Martins, ainda que não completamente acabado, na sua construcção, tambem recebia ornamentação das mais fulgurantes, sobresahindo, no meio d’aquelle alluvião de bandeiras, de festões e de balões de varias côres, as bandeiras de Portugal e do Brazil, as quaes, içadas n’um mastro commum, fluctuavam ao sabor da viração, como para indicar que as duas nações, mesmo separadas pela immensidade do oceano, guardam sempre uma communidade de origem que se deve considerar a base indestructivel da verdadeira fraternidade.
O atrio da capella tambem não destoava da ornamentação geral, recebendo grande numero de mastros, de bandeiras e de balões multicores.
Ao lado direito, defrontando com a entrada do palacete, erguia-se um coreto dos mais bellos que temos observado.
Finalmente, do lado do arraial, quasi no angulo extremo da capella-mór, tambem se via um grande coreto, ponto principal de concentração para os amantes de boa musica.
No dia 23 de agosto, logo pela manhã, estavam ultimados quasi todos os trabalhos de ornamentação.
As barracas dos mercadores, completamente replectas de comestiveis, de bebidas, apresentavam um movimento extraordinario.
Enorme multidão circulava por todos os pontos mais ou menos proximos dos festejos, esperando anciosamente o desenrolar dos acontecimentos.
O novo templo, na sua ornamentação interior, apresentava tambem um dos aspectos mais encantadores.
Das grades do coro pendiam grandes bandeiras, entre as quaes pudemos distinguir as de Portugal e do Brazil.
Aos lados do atrio, enfileirados no gradil de ferro que ladeia a parte superior, alguns mastros, garbosamente enfeitados por festões de murta, sustentavam grandes cordas que se prendiam no alto da capella, e das quaes pendiam balões e bandeiras de côres vistosas e variegadas.
No alto do novo templo, mesmo no ápice da cruz de granito, fluctuava uma bandeira encarnada onde se lia em grandes caracteres brancos, o seguinte :
OFFERECIDA A S. GONÇALO
Todos sabiam previamente que a nota dominante da festividade, seria a assistencia do bispo do Porto, o qual, convidado expressamente pelo sr. Martins, havia de presidir pessoalmente a todas as ceremonias inherentes á benção da nova capella.
Por isso, á medida que a noite se avisinhava, corria pressurosa a multidão para assistir á chegada do venerando prelado, que era esperado n’esse dia, pelas 5 horas da tarde.
Mas, emquanto as horas iam passando e o telegrapho participava a chegada do illustre bispo a Estarreja, os festejos, préviamente annunciados, continuavam ininterruptamente, com enthusiasmo crescente e deslumbrante.
De vez em quando subiam ao ar enormes girandolas de foguetes, e, de tempos a tempos, estouravam ribombantes salvas de morteiros, que atroavam os ares, ecoando por sobre as quebradas das montanhas; e as bandas de musica, commodamente alojadas nos coretos, faziam ouvir lindas peças d’harmonia, que deliciavam a multidão.
A onda dos convidados affluia de todos os pontos do concelho e até de concelhos distantes, pois a solemnidade do acto, exigia mais alguma cousa do que a presença das pessoas gradas de Macieira de Cambra.
Circulavam os carros onde se viam bellas e elegantes senhoras trajando as modas da estação; perpassavam as bicycletas com a celeridade propria de quem dispunha de pratica apurada n’este elegante genero sportivo, e as raparigas aldeãs, com os vestidos bizarros das lavradeiras, percorriam, aos magotes, o extenso arraial,totalmente adornado para receber a visita alegre e sin-cera dos bons romeiros.
As 4 da tarde, pouco mais ou menos, chegou uma força de infanteria, commandada por um alferes.
Este contingente fôra enviado pelo, governador civil de Aveiro, a pedido do sr. Martins, que assim procurou imprimir á festividade todo o explendor possivel, nada olvidando para agradar ao hospede illustre que devia receber, dentro em poucos momentos.
De repente, quasi inesperadamente, enorme salva de morteiros annunciou que o bispo do Porto havia despontado no alto das Baralhas.
Como impellida por força occulta e irresistivel, toda aquella massa popular se precipitou para o lado da estrada, ao encontro do preclaro sacerdote.
D’ahi a pouco era o antigo missionario das terras africanas recebido na encrusilhada de Pinheiro Manso, por entre os vivas da multidão que não cessava de accalamar.
Muitos sacerdotes, entre os quaes se podia destacar o padre Joaquim Manuel Tavares, capellão effectivo do novo templo, os priores de Villa-Chấ, Castellões, Roge, etć, tambem se achavam presentes, para victoriarem o seu illustre chefe espiritual.
A corporação dos vereadores municipaes, tendo á frente o seu presidente, tambem havia comparecido, bem assim, quasi todas as pessoas gradas do concelho,figurando em primeiro logar o administrador, o medico municipal, e muitas outras que não conseguimos bem distinguir.
Descrever todas as peripecias d’este momento solemne, seria tarefa verdadeiramente impossivel ainda mesmo para o observador mais attento e perspicaz.
A multidão que n’um instante rodeou o illustre prelado, não permittia apanhar qualquer apontamento, por mais insignificante que fosse.
Porém, dissipada a primeira emoção, aquella enorme agglomeração, levando á sua frente o estandarte municipal, e precedida por uma banda de musica, tomou a estrada que conduz ao palacete do sr. Martins.
Este, em companhia de toda a sua familia, aguardava a chegada do hospede desejado, para quem havia mandado preparar magnificos aposentos.
Era quasi ao pôr do sol quando o numeroso prestito assomou ao portal do palacete.
N’esta occasião a força de infantaria, postada do lado de fóra do pateo, apresentou armas ao illustre bispo, que, sem mais esperar, deu entrada no grande portão, recebido por uma nuvem de flores que lhe foram lançadas pelos filhos do sr. Martins.
Então o sr. José Antonio Martins Junior, ao patamar das escadas, leu em voz clara e firme a seguinte mensagem de felicitação:
«Ex.mo Rev.mo Sr.
José Antonio Martins e sua familia, sentem-se possuidos de immenso jubilo por terem entre si S. Ex. Rev.ma o Senhor Bispo do Porto, D. Antonio José de Sousa Barroso. E é por isso que, com a alma a trasbordar de alegria, vêm aqui prestar-lhe as suas felicitações e dar as boas vindas.
Queriamos ter a penna dos grandes sabios para deixar descripto este dia tão memoravel para nós e para a terra que nos viu nascer.
V. Ex. Rev.ma accedeu, e quiz dar-nos a satisfação de vir benzer uma humilde capella que mandamos construir no logar que nos foi berço; e aproveitando-nos d’esta ocasião, podemos affirmar que emquanto a cruz que encima esse pequeno monumento religioso, attestar ao amundo inteiro que o seu martyr foi um Deus, testemunharemos a firme cohesão das nossas crenças religiosas á S.ta Sé, e do intimo fazemos votos pela prosperidade da Egreja, e muito em especial d’esta Diocese do Porto, a cujos destinos tao honrosa e superiormente preside V. Ex. Rev.ma.
Acceitae, pois, Ex.mo Prelado, as homenagens e os humildes protestos d’amor e veneração de todos nós, que ficaremos orando pela Egreja e por vós.»
Coelhosa de Castellões, 23 de agosto de 1902.
O illustre prelado agradeceu tantas provas de consideração e respeito.
Então, no meio da multidão, ouviu-se uma voz que bradava:
Viva o illustre bispo do Porto!
Viva o missionario das terras africanas !
Viva o heroe da patria!
Vivas que foram repetidos por toda a multidão. Em seguida o sr. José Antonio Martins, tomandoa palavra, convidou o recem vindo a entrar no seu magnifico palacete, afim de descançar um pouco das fadigas da viagem, terminando assim a magnifica recepção, agradabilissima sob todos os aspectos.
Cá fóra, continuavam os festejos com grande animação. As girandolas de foguetes estrugiam nos ares, os sinos repicavam alegremente, n’um tom ovante de festa, e a onda popular, dispersando-se por varios pontos, levava na alma rude e singela, a doce consolaçãode ter visto, ao menos uma vez na vida, o seu amado pastor espiritual, que tão carinhosamente sabia retribuir as felicitações d’aquelles que o acclamavam.
Ainda sobre estes factos, e para melhor esclarecel-os, para aqui transcrevemos a seguinte correspondencia, publicada no Primeiro de Janeiro, do Porto:
MACIEIRA DE CAMBRA, 29 DE AGOSTO
«Seria uma falta indesculpavel, um crime, até, não dizer, n’esta occasião, alguma cousa ácerca da vinda do nosso amantissimo e bondoso Prelado a estes sitios.
A chegada do nosso Ex.mo e Rev.mo Bispo a Coelhosa, povoação lindissima da freguezia de Castellões, teve logar no dia 23, pelas seis horas da tarde.
No extremo do concelho era aguardada a sua chegada pela camara municipal d’este concelho, encorporada com o seu estandarte, administrador do concelho, secretario e mais auctoridades que alli o esperavam.
Apenas transpoz a linha divisoria, uma girandola de foguetes e o hymno da carta, tocado pela philarmonica Cambrense, annunciou a todo o valle de Cambra a subida honra que ia ter.
Sua Ex. Rev.ma desceu então da carruagem em que vinha conjuntamente com o ex.mo governador civil d’este districto, e depois de ter recebido os cumprimentos do estylo, de todas as auctoridades, e que tambem foram feitos ao ex.mo governador civil, ouviu uma pequena allocução do presidente da camara, ácerca da sua vinda a esta terra, pobre, mas honrada e laboriosa, e a quem concedera a Providencia tantos encantos e bellezas.
S. Ex. Rev.ma agradeceu, pedindo as bençãos do ceu e todos os dons de Deus para o pɔvo que assim o recebia.
Terminados os cumprimentos, seguiu na mesma carruagem S. Ex. Rev.ma com o ex.mo governador – ambos tinham já vindo de Estarreja – para o Pinheiro Manso, que é o principio do logar da Coelhosa.
A camara e auctoridades tambem tomaram as suas carruagens, formando-se uma comitiva respeitavel de oito carruagens, phylarmonica e immensa multidão de povo.
No Pinheiro Manso, onde se apeiou, era S. Ex.ªRev.ma esperado por quasi todo o clero d’este districto ecclesiastico, tendo na sua frente o muito digno Vigario da Vara do 2.° districto d’Arouca e interino d’este, e que recebeu d’elle os seus cumprimentos.
Os vivas, as saudações misturadas com os sons da musica e estralejar dos foguetes, produziam um emthusiasmo e uma commoção, que se póde sentir, mas não explicar.
D’aqui foi S Ex. Rev.ma acompanhado até ao lindo palacete, ainda por concluir, do grande e honrado capitalista, natural d’este logar de Coelhosa, o ex.mo sr.José Antonio Martins, continuando sempre os vivas e alternando se no toque de lindas peças de musica as phylarmonicas de Carregosa e Cabrense.
Chegado o cortejo ao atrio do palacete, foram todos surprehendidos por uma linda allocução que lhe dirigiu, lendo-a, o filho do ex.mo sr. Martins, alumno distincto do Collegio de Campolide.
S. Ex.” Rev.ma agradeceu, reconhecendo-se que estava comovido.
Recolhido ao palacete, recebeu S. Ex.ª Rev.ma os cumprimentos de toda a familia Martins e de todas as pessoas que o quizeram saudar.
Seguiu se depois o jantar, a que assistiram, além de S. Ex Rev.ma, o ex.mo governador civil, rev. Joaquim Lopes, rev. João do Espirito Santo, rev. Conego Bernardo Gomes, rev. Joaquim Manuel Tavares e commendador Leite, de Amarante, amigo particular de S. Ex. Rev.ma e que o tinha acompanhado do Porto, muitos outros convidados da familia Martins.
Até á meia noite alternaram se as duas philarmonicas em dois corêtos, collocados no adro da nova capella, muito proximo do palacete do ex.mo sr. Martins, tocando as melhores peças dos seus reportorios; accendeu-se uma linda illuminação, fornecida por um individuo da villa de Gouveia; queimou-se muito fogo, no meio de descantes populares; dando o realce final a estas vesperas da festa, as luminarias, luses que se accenderam toda a freguezia e que davam a este quadro um não sei que de phantastico, de admiravel.
Tudo isto era preparatorio para a grande festa que se devia effectuar no dią seguinte, benção d’um novo templo e festividade.»