
A apanha do tojo
por Adolfo Coutinho



Os trabalhos agrícolas começavam manhã bem cedo e prolongavam-se até altas horas da noite.
Quando era preciso ir apanhar tojo nas courelas do Penedo, Alto do Côto, Escaiba, Lomba Gorda, ou nas Campas, o meu pai e os jornaleiros assalariados ou vizinhos rogados em regime de interajuda, saíam de casa ainda de madrugada.
O percurso, a pé, demorava cerca de uma hora e quando começasse a clarear o dia era preciso estar já no mato.
O meu pai bebia um gole de café preto. O Ti Augusto da Ponte, seu assalariado, engolia um copito de aguardente a empurrar um figo de seira trincado à pressa, e lá seguiam os dois, calçada acima, para o Alto do Côto.
A minha mãe ainda ficava em casa, para acomodar o gado e mungir as vacas. A Quitas do Outeiro viria pouco depois recolher o leite que levava num latão, à cabeça, para a fábrica Martins & Rebello, no Pinheiro Manso.
Para a parva das 10 horas e para a merenda, minha mãe fazia bolinhos de bacalhau – uma mistura de batata cozida mal desfeita, pouco bacalhau, farinha de trigo e salsa.
Um ovo batido dava liga aos bolinhos, fritos em azeite, numa sertã grande, exteriormente enfarruscada pelo negro de fumo.
À medida que saíam do lume, os bolinhos eram guardados num tacho de alumínio, mais leve e adequado para o transporte.
Para o meio-dia, era preciso fazer um tachada de arroz com rojões ou frango.
Tudo acomodado numa cesta merendeira grande, mais meia broa de milho retirada da tábua pendurada na loja velha onde o pão era guardado depois de cada cozedura semanal, minha mãe juntava os garfos de ferro, cobria tudo com uma toalha de linho e seguia, cesta à cabeça, para o monte.
O garrafão do vinho já tinha ido na frente, pendurado no cabo da enxada ao ombro de meu pai.
O Ti Augusto gostava de regar as goelas de vez em quando, para limpar a poeira que saltava da terra seca e para buscar, no vinho, a energia necessária para manter o bater firme da enxada no corte do tojo.
O meu pai e o Ti Augusto faziam uma pausa para a parva das dez. Sentados numas pedras, à sombra dos pinheiros, descansavam um pouco, comiam alguns bolinhos de bacalhau e bebiam uns goles de vinho.
A rematar a pausa da parva, o Ti Augusto enrolava algum tabaco numa mortalha ou fumava um “provisórios” que meu pai comprara na loja do Senhor Alves e D. Virgínia, na Lombela.
Por essa hora, o Manel Caetano estaria a sair do Outeiro, sentado na cheda do carro, encostado a um fueiro e guiando os bois com a aguilhada enquanto assobiava um melodia popular.
Não tardaria a chegar e tinha de estar tudo pronto para começarem a fazer a carrada.
Preparada a carrada de tojo, o Manel Caetano apunha os bois ao carro, enfiava a chavelha a prender a canga ao cabeçalho, pegava na aguilhada e começava a descida do Alto do Côto até Cabril, ora apertando ora aliviando os travões do carro, cujos calços de madeira, roçando nas rodas, regulavam o andamento.
O carro de bois era construído segundo o velho sistema romano, com um eixo móvel e as rodas formadas por três peças interligadas, sem raios.
Tudo feito em madeira (exceto os aros metálicos à volta das rodas e a manivela e parafuso sem fim do sistema de travagem), o rodar do eixo nos cocões fixos na cantadeira produzia uma chiadeira característica e própria, por vezes atenuada com uma esfregadela de sabão.
Para além de anunciar a aproximação do carro, o diferente chiar do eixo servia também para identificar, à distância, o respetivo carreiro.
A descida até Cabril era algo penosa e demorada. O meu pai e o Ti Augusto enfiavam, cada um e de cada lado da carrada, uma grande forquilha, em cujo cabo comprido se penduravam, sempre que era preciso equilibrar a carga nas curvas ou balcadas do caminho.
A minha mãe avançara, na frente, para ir fazer a ceia. As couves galegas já estavam segadas e as batatas tinham sido descascadas pelas minhas irmãs mais velhas.
Quando ouvia o arrastar das rodas no lagedo ao Cimo da Estrada, a minha mãe juntava um pouco de bacalhau às couves e batatas que ferviam na grande panela de ferro, ao lume.
Enquanto os homens descarregavam o tojo, exaustos mas mais animados pela aproximação do fim da jorna, a minha mãe preparava a grande travessa de bacalhoada que punha no centro da mesa e de onde todos comiam.
Não havia pratos individuais – espetavam todos da grande travessa pousada no centro da mesa.
A broa estava também em cima da mesa e, quem quisesse, arrancava um naco de côdea ou cortava um pedaço de miolo com uma única faca posta ali para esse efeito.
A caneca de vinho verde tinto, que passava de boca em boca, era atestada por meu pai, sentado num mocho, na cabeceira da mesa.
A seu lado tinha um jarro de barro preto, com as suas iniciais, encomendado no Pucareiro do Barbeito e hoje depositado no Museu Municipal de Vale de Cambra, por oferta de minha irmã Joaquina, que o recebera em espólio de herança.
Quando o jarro estava a ficar vazio, meu pai enchia-o de novo a partir de uma infusa de folha que fora encher com o melhor vinho que tinha nos tonéis da adega.
Finda a ceia, o Manel Caetano ia buscar os bois, que deixara amarrados a duas videiras grossas do quinteiro, a comer um braçado de milho e erva que minha mãe pusera à frente de cada um.
Como recompensa pelo esforço feito e como paga do tempo gasto, o carreiro levava duas faixas de bandeiras de milho secas, pasto especial reservado para o Inverno ou para uma rês doente.
– Boa noite, Manel e obrigado pelo carreto – despedia-se meu pai. E tu, Augusto, amanhã não precisas vir tão cedo. Vamos compor a ramada da Arroteia e, como sabes, o Ti António Vendas não é carpinteiro para aparecer aqui muito cedo – rematava meu pai.
Texto de Adolfo Coutinho, inserido no livro “Memórias”, editado em 2017