O lobo, a raposa e o queijo

por Augusto Soares da Carvalhalva

O lobo, a raposa e o queijo
O que aquele lobo ali via, ao pôr-do-sol dum dia quente de Junho, também eu vi, provo-o com a imagem que junto, ele, baboso, cabeça de lobo esfomeado já fora da toca funda, donde sempre tocaia tudo o que por cá mexe, espreitando aquele vermelhinho queijo bola, que a poente se preparava para o seu mergulho diário na Ria de Aveiro. 

É que o lobo, que nunca foi muito esperto, desde a pêta que a raposa matreira lhe enfiou, acredita que aquele balão rubi é um Queijo Flamengo de Vale de Cambra, um dos queijos de Cambra era, ou Castelões, ou Pastor, ou Limiano, um deles haveria de ser, ninguém o convence do contrário, tal a vontade daquele estômago sempre roído de fome.

E a história é simples, seria o ano de 1960, nunca mais a esqueci, teria eu uns dez anos, já lá vão sessenta, contada pelo famoso caçador e contador de histórias, o Manel Fortunato, que era da Lombela e casou em Aguincheira com a Gracinda do ti' Luis, aquando dos comunitários e habituais Serões de Inverno em casa da minha avó materna:

Uma noite, corria um Junho fresco, o Lobo Baboso, do Cabecinho, um dos matos que tínhamos perto da Ponte do Rio de Cabras, esfomeado como sempre, ia a Raposa Manhosa de novo tentar as capoeiras de Aguincheira, ligeiro, saltou à frente dela – mais lesto que o Zé do Telhado nos seus épicos assaltos nas serranias do Marão – tão decididamente que ela não conseguiu escapar da roda apertada com que aqueles braços longos a envolveram.

– Ai, ai, … amigo lobo, tenha dó, que sou sua amiga, para quê comer-me se estou tão magrinha, só pele e osso, que a canzaria d’Aguincheira não me tem dado abébias, você que é tão inteligente, para quê desgastar seus lindos dentes a rilhar peles tão secas,… Ah, mas eu sei dum segredo, só meu, mas vou-lho contar, que ainda somos parentes, … mesmo aqui em baixo, no açude da Vide, ontem, lá escondi um queijo grande e redondinho que fanei à ti’Carolina das Sementes, de Santa Cruz, que da feira da Gandra retornava a casa.

– Ah, … comadre raposa, como eu gosto de queijo, e então com uma carreira de pão de trigo de Ul, nem é bom lembrar… Mas é mesmo a sério, não me estarás a enganar?

– Não, meu querido primo, venha daí que eu lhe mostro.

E era mesmo perto, foi só atravessar o lameiro da Esterne – de que o Manel Fortunato até era Caseiro – passar a estrada e descer a encosta virada ao lugar da Vide.

Na noite limpa, brilhava imponente a Lua-cheia.

A água do açude parecia parada, reflectindo um céu avermelhado, lua e estrelas, um quadro que só em Junho, apenas levemente ao de lasso da água se apercebiam as rugas tremidas que a correnteza nela riscava, … e ali, mesmo ao meio do açude, encostadinha aos penedos redondos que represavam aquela mistura de águas dos dois rios – que nem uns quinhentos metros acima, o Cabras desaguava no Caima – um queijo enorme se via sob a água.

– Está a ver, amigo Lobo, lá está o queijo! Vá devagar pelas pedras, não vá escorregar, a água é baixa, bebendo-a um pouquito e logo chega ao queijo.

– Ah, prima do coração, que bom tê-la encontrado, amiga assim nunca terei outra.

Mal o lobo começou a trilhar as primeiras pedras do açude, num foguete, a raposa virou de frosques, … num nada, já lá em cima, no alto da costeira, a ver a cena, refastelada no bordo da Levada de água que, num trajecto plano duns dois quilómetros, o lugar d’Aguincheira tirava do Rio de Cabras.

E ele, o Lobo Baboso, acachapado sobre a água, ia bebendo, babando água pelas beiças. Nunca o apelido “Baboso” lhe assentara tão bem.

Uma hora passou, e o lobo a arredondar a barriga, já um balão, igualmente avermelhado, que a luz da Lua-cheia dali não mais quis sair, a iluminar o espectáculo.

Já a madrugada ia entrando e mexendo com o tempo, primeiro uma leve brisa, depois uma aragem repentina, aqui já o volumoso lobo não conseguiu equilibrar-se e, catrapum, caiu de chapa na água, que a jusante do açude espumava como nunca. Talvez assim espumasse de tanto rir, pensou a raposa, que até as águas mais serenas têm dias em que se escangalham de rir da estupidez alheia.

E a raposa, por entre as lágrimas de também tanto rir, a última visão que teve do lobo, ia ele à vela, barriga içada ao alto, já na curva do primeiro moinho à entrada d’Aguincheira, … um roufinhar engasgado entoava no silêncio da madrugada:

– Eu hei-de voltar, eu hei-de voltar, o queijo é meu e não me há-de escapar!