

Poemas Tri Angulares
Prefácio
Esta é a segunda obra poética de Manuela Correia que no seu livro de estreia já revelava grande maturidade.
Neste novo trabalho confirma os dotes privilegiados da sua veia poética que lhe permitem ser bem sucedida numa Arte que não é fácil, pois que além da inspiração tem que obedecer a requisitos, a meu ver indispensáveis, para que a escrita poética se diferencie claramente da maneira de escrever corrente e simples.
Ora, lido o texto, entendo que ele satisfaz muitos desses principais requisitos.
Desde logo a mensagem da autora é sempre expressa com beleza. Verifica-se nos poemas o justo equilíbrio entre conteúdo e forma. Nada há de postiço na elaboração da obra, a qual não acusa redundância nem peca por defeito. Tem, sim, autenticidade, uma vivência humanamente sentida.
Outra qualidade a salientar nos poemas é o ritmo, resultante não só do bom uso da métrica e da rima ainda usadas, mas do próprio andamento da frase, onde as palavras continuam a significar para lá do sentido comum, tocando-nos com o golpe da surpresa como que fazendo incidir sobre nós aquele relâmpago a que num belíssimo poema alude Luiza Neto Jorge.
Quanto à temática da composição ela não anda longe daqueles três assuntos que no dizer de Jorge Luís Borges informariam toda a literatura, ou sejam o amor, a morte e o tempo.
De amor muito se fala ao longo do livro de Manuel Correia. De amor é o canto apaixonado mas também o silêncio lascivo onde há “ilhas terraços / rosas incenso / barro moldado / parto sem tempo”.
A morte, se está presente, nem sempre é considerada como “o fim da teia sórdida” mas antes a “seiva a renascer da cinza”.
Entretanto o tempo, pelos dedos da poeta, vai dedilhando a harpa sobre a ravina esconsa.
Transcrevo:
“Do tempo só uma redonda estátua / porque é longe demais o movimento”.
E ainda:
“Fazes do meu corpo um templo / que cada vez mais o tempo / te ensina a contemplar / Há dias em que renovas o templo / no tempo de um olhar”.
Ao poeta resta-lhe o sonho “e depois sonhar não custa nada / num lugar à toa numa hora qualquer / sobretudo se estivermos acordados”.
Por tudo quanto disse e não disse sobre este novo livro de Manuel Correia , formulo o voto de que muitos o leiam e releiam: encontrarão poesia.
Edgar Carneiro
Espinho, Novembro de 2002
Era na casa a distância do céu
e além do céu silêncio apodrecido
Era no quarto o vazio de um peito
e além do peito um seio intumescido
Era no jardim a marca do vento
e além do vento um verme na memória
Era no meu corpo o afogar do sangue
e além do sangue o ser sem trajectória
Eram na rua passos apressados
e além dos passos beco ou passaporte
Eram mãos invisíveis nos meus dedos
e além das mãos ponto de vida ou morte
Toda a minha vida entre as estações se tem dividido
por crateras por planura por colinas
Quantos dias só se prende nas noites
quantas noites só se solta nas matinas
Resiste sempre à entrada do Outono
intento de prolongá-lo ou desmenti-lo
Mas depois vive tudo entre firme e embriagada
desde a escada que range ao patamar tranquilo
O Inverno chegue ou não de forma exacta
E a minha vida em variável sistemática
de habitar um casulo ou uma marginal
A Primavera pela avidez com que a anseia
é sempre uma enchente mas em breve só um rasto
a sensação por um tempo é finito
sem que integralmente se tenha gasto
O Verão é como abrir comportas de ar
que dão acesso à lucidez e às loucuras
A minha vida toda se redesenha
entre inscrições movediças e seguras
Relembro um bosque em meu passado
e o teu instinto a devassá-lo
Nas zonas virgens e sombrias
as tuas mãos a arder perdidas
Havia folhas coloridas
rente aos teus olhos como ogivas
E a luz que havia comovia-se
do que no fundo não dizias
Lembro fragilizadas áreas
e a ternura tua a nimbá-las
Ramos ou braços que crescendo
se entrelaçavam em Setembro
E num regato havia lábios
e a tua boca a desvendá-los
E em que torso ou em que tronco
o teu assombro foi mais longo
E lembro o bosque menos livre
mas muito mais inteiro e firme
E o teu amor já com estigma
que pautaria a minha vida
É sobretudo haver cerrada bruma
a erguer um indomável desespero
por fora das crateras do existir
por dentro das fachadas do não ser
Oh vontade indistinta de ser quê
Oh incêndio já morto por qual água
Oh derrocada louca nos sentidos
Oh exéquias de tudo em nenhum lado
E é terrível esta casa no escuro
entre a questão de ser ou não terrestre
E é terrível raízes a exumarem-se
na cave de uma suspensa floresta
E no passar das horas tudo intacto
mas por dentro do tempo um redemoinho
Oh náusea de sentir e de pensar
Oh febre de crer ou não que há destino
É sobretudo a bruma a limitar
toda a nossa expansão num qualquer mundo
Oh Ninfas Oh Parcas Oh Mãe Oh Deus
É sobretudo haver bruma nenhuma
Num grande labirinto eu vagueava
estando a cada passo mais perdida
O vulto da cidade era outro mundo
Ali não crepitava a minha vida
Não te reconheci naquele quadro
havia tantas torres que hesitei
Havia tantas ruas tantos muros
que nem mesmo a mim própria me encontrei
Nem despida de sol ou de espanto
nem vestida de névoa ou de mágoa
Faltavam as dunas e as rochas
o cheiro da terra e o som da água
Não vislumbrei nem sombra do meu corpo
nem sequer descobri rasto do meu nome
porque afinal é só de mar que tenho sede
porque no fundo só de terra tenho fome
Que é da rima da brisa que não rima
que é do arco de Setembro que não arde
Que é da sonata lírica que habitava
uma harpa reunida rente à tarde
Que é da ave que cantava as madrugadas
que é do mar que desmentia a solidão
Que é da luz que improvisava uma basílica
que é da crisálida que renascia do chão
Que é do ramo que repreendia o rubro
e nem na sombra agora se entrelaça
Que é do degrau que rangia e não range
à passagem do tempo que não passa
Lembram-me aqui todas as cores
um sonho que não se desmente
O tempo vibra ao som de Agosto
e um poema crepita de tão quente
Há na colina um pássaro iluminado
a dar-me a luz de que às vezes sinto falta
a que brilha por dentro até da noite
a que se pode agarrar e é tão alta
Que me importam sombras luas ou marés
diante deste imenso e raro achado
Se consigo reunir aqui tudo quem sou
o obscuro e a nitidez do mesmo lado
Estamos fechados num casulo
e remordemos a memória
E à pergunta que se rasga
se é já o fim da teia sórdida
Ecoa um raio rente ao chão
– Ainda não ainda não
E sob um frio até aos ossos
e entre a bruma sobre os dedos
À pergunta que discorre
se é o fim dos pesadelos
Soa a voz da negação
– Ainda não ainda não
Estamos velhos só de espera
e somos tristes entre a vida
Mas à pergunta que estremece
se toda a dor já foi sofrida
Diz o silêncio em confissão
– Ainda não ainda não
Estamos prostrados sob o céu
e remexemos sentimentos
E à pergunta que lateja
se é enfim o fim dos tormentos
Há um sinal de rejeição
– Ainda não ainda não
E alimentamo-nos de um ópio
que de nós próprios se alimenta
E à pergunta que se esbarra
se murcha a luz lamacenta
Sobe um grito de explosão
– Ainda não ainda não
E caminhamos entre a treva
de geração em geração
E à pergunta que se ergue
se é o fim da escuridão
Silva o tempo na expressão
– Ainda não ainda não
E há-de sobrevir a morte
Num fulcro de exactidão
E à pergunta tão velada
se é o fim da solidão
Cai o pano e soa então
– Talvez sim e talvez não
Recuo até onde tenho memória
E vejo-me sentada no alpendre
dessa casa onde vi a luz do mundo
da terra onde cheguei a adolescente
No meio houve a florida meninice
e os muitos colos a adoçar-me o corpo
A minha avó era a dona da aurora
a minha mãe rainha do sol posto
E terra muita terra a encher-me os olhos
Mas essa ainda me acolhe a existência
Por isso a canto com toada lírica
no halo passado no encontro presente
– Só choro nela o que nela perdi
A idade da verdade e da inocência
Não é certo dizer irmos os dois
pois já não caminhávamos a par
Tu fluías e seguias em frente
eu balançava e ficava para trás
Teu braço braço direito abria clareiras
onde brilhava a luz em que fluías
Meu braço esquerdo erguia barricadas
onde morava a sombra a confundir-me
Teu peito era o desenho mais aberto
a todos os sinais de plenitude
O meu peito fechado era só esboço
e todos os sinais eram rasuras
Tua alma vivia a renovar-se
e chamava por mim a cada espaço
Minha alma vivia só letarga
e sem motivo algum que a restaurasse
E assim tu encenavas um caminho
e assim nenhum caminho eu soletrava
Não seguíamos juntos e no entanto
Que estranho como tanto nos amávamos
Fosse o meu olhar mais que um brilho de água
fossem os teus gestos só de glicínias
fosse a minha boca uma alvorada
e fossem os teus dedos violinos
Fosse a noite mais lúdica do ano
fosse o dia mais lúcido do século
fosse o canto no espaço além do branco
fosse o eco no corpo além das células
Fosse uma seiva a renascer da cinza
fosse o destino um resplendor de círios
fosse na vida a Vida que não finda
e fosse assim talvez o paraíso
Era a manhã mais nocturna
que me assistia de longe
Era o saber que era ontem
e sentir que ainda é hoje
esse ponto em que me encontro
entre o líquido e o sólido
essa poalha no cérebro
esse estado quase mórbido
Mesmo à luz do meio-dia
a alma ensaiou um grito
porém o corpo ficou
no mesmo nada cativo
Só os olhos erguiam torres
mas sem nervos construídas
que não tocavam o céu
nem no chão tinham raízes
por mais que as multiplicasse
pra negar minha evasiva
em espuma se volviam
mal vinha a primeira brisa
Era a hora do sol-posto
e cor nenhuma me amava
por dentro do meu silêncio
uma ruína esventrada
Que me lembro de existir
noutra elipse ou noutra fuga
noutro porto de abandono
noutra ponte de lacuna
É de feltro hoje o tempo
e de matizes
São de cera as palavras
não as risques
É de franjas o caminho
e de rendas
São de asas minhas mãos
não as repreendas
É secreto este encontro
não estremeças
São de seda as minhas coxas
não te esqueças
É a noite à nossa espera
de joelhos
São de água os meus lábios
vem bebê-los
Quanto tempo caminhamos
ao longo das nossas vidas
sem nunca indagarmos nada
Nem as crateras de bruma
nem as torres de miragem
nem os lagos fluorescentes
Nem os segredos do céu
nem os motivos da terra
nem a cultura de um Deus
Nem o galope das armas
nem a razão dos tratados
nem a cor do Universo
Nem o peso das palavras
nem o sentido de um grito
nem a sombra do silêncio
Nem o percurso da vida
nem o tempo que se evola
nem o eco dos nós próprios
Nem o que em nós é matéria
nem o que é força da mente
nem o que em nós é volúvel
Só damos ao pensamento
um lugar à indagação
quando a solidão tem forma
Ou quando o medo nos cerca
de nos perdermos na treva
ou acordarmos no abismo
Ou quando uma voz pergunta
o que fizemos do tempo
o que aumentamos à vida
Ou quando a dor nos inibe
de ver a luz que sustenta
a chama dos nossos olhos
Ou quando o sangue nos grita
que somos mais limitados
do que a nossa própria sombra
Ou quando um adeus nos marca
ou um vendaval nos tomba
ou um deserto nos acolhe
Ou quando um baque nos faz
pressentir que a vida treme
e que a morte nos espreita
Em tudo o que é silêncio que rumor
em tudo o que é calor que calafrio
Em tudo o que é esquecido que memória
me devolve a infância neste rio
Atravessá-lo é cair de joelhos
ter meio metro e meia dúzia de anos
É sem ter nada ter o mundo todo
sem passado ou futuro pra chorarmos
Em tudo o que é suspenso que surpresa
em tudo o que é retina que verdade
Em tudo o que perpassa há sempre um lastro
a demarcar intacta a ingenuidade
Que torre de basalto se levanta
e que poço sangrento se aproxima
Que lava inexacta alastra nas veias
que grito rói a luz e a surdina
Que poeira sem tréguas se revolve
que vendaval insurrecto em gás sopra
que lágrimas de areia se condensam
que travo se oxida em minha boca
E antevejo um destino sem sentido
e uma rota decomposta e perdida
Que interminável dor me aponta a faca
que vazio insolúvel minha vida
Que estilhaço na muralha do tempo
e que tortura é pensar em ti
Que sismo se debate no meu corpo
Oh que inferno sonhar que te perdi
Era na rua a vivência do sono
e em toda a casa se repercutia
Mas os meus olhos mantinham-se acesos
inventando painéis à luz do dia
Não me incluía o sono em sua teia
que se urdia tão branca e tão redonda
A princípio é cómico depois trágico
o tempo em que a vigília se prolonga
E quanto mais as pálpebras cerrava
mais os painéis cresciam desmedidos
em imagens macabras e divinas
mas todas a atiçarem-me os sentidos
Passava já das três da madrugada
e o silêncio era a esteira dos estios
só eu tinha no corpo sons fantasmas
só eu tinha na alma dons vadios
É tão intenso este planalto
e ao mesmo tempo tão refracto
pelo que em ti é proeminente
pelo que em mim é amarrotado
É tão vibrante este quadro
e ao mesmo tempo paraíso
pelo que em ti há de sensato
pelo que em mim há de excessivo
É tão de sol este interlúdio
e é tão de sombra ao mesmo tempo
pelo que em ti há de firmeza
pelo que em mim há de suspenso
Talvez que um dia
seja inventado
um longo lago
de eternidade
Nada de flancos
nada de torsos
Só do que está
para além do corpo
Talvez que nasça
por entre dunas
mas não de areia
mas não de fumo
Antes de argila
que mais se molda
no que por dentro
temos de formas
Curvas ou rectas
será indistinto
desde que se ergam
num só sentido
As que nos levam
além do tecto
além do dúbio
do céu deserto
Que sendo límpidas
não nos reprovam
não se confundem
e nem se evolam
Não as que crescem
mas depois murcham
sem que saibamos
pra onde vão
Antes as livres
do nosso pânico
que têm casa
dentro do crâneo
mas que respiram
sem um senão
sob a moldura
do coração
De quem mais ama
tanto mais altas
e além da música
que rasga as pautas
Podem ser brancas
podem ser verdes
porém sem lodo
de haver paredes
Todas assentes
no mesmo largo
sem impostura
de haver atalhos
Nem ruidosas
nem apagadas
só cintilantes
dentro do lago
Que pode mesmo
nem ser exacto
Mas inventá-lo
não custa nada
Há um rasto bem secreto de nevoeiro
no parque das lembranças peregrinas
No ar da noite crescem ervas bravas
entre os dias levantam-se ruínas
Das batalhas erguidas na ribalta
somente o lodo agora é trajectória
Por mais que se eleve a bruma dos poços
há lapsos que não cabem na memória
E há sangue derramado sobre um porto
onde jazem navios sem notícias
E não há luz no tempo que nos diga
quando vão terminar estas sevícias
Quando as mãos
vagas de expressão
têm fome
de outras mãos
Quando os olhos
lentos ou longos
têm sede
de outros olhos
Quando uma música
põe o corpo dormente
mas dói
no pensamento
Quando o sono
às vezes mente
e a vigília
está atenta
Quando o brilho do céu
se turva
ao mínimo sinal
de invocarmos
um nome ou um lugar
Quando o tempo
deixa de correr de frente
e começa a arrastar-se
lentamente
Há com certeza um espaço
preciso ou inexacto
mas que contém a legenda
da palavra saudade
É tarde meu amor
A luz da vela que acendeste
vai desistindo aos poucos
A flor que tu plantaste
mesmo na raíz dos meus cabelos
já vai descendo aos ombros
É tarde meu amor
A música que me destinaste
é já trémula e rouca
O licor que verteste
para ilibar a sede dos meus lábios
já vai esquecendo a boca
É tarde meu amor
Os nossos rituais secretos
já estremecem na surdina
E a ternura vestida
ou despida até ao limite
já não chega ao sublime
É tarde meu amor
A promessa em que dissemos sempre
já só se cumpre às vezes
E o molde que esculpimos
para atravessar os nossos dias
já não mais o mesmo
É tarde meu amor
Tu estás parado na minha sombra
por mais que tentes estendê-la
E eu estou apenas morta
na vida feliz que me deste
e eu não soube viver
Arde um estio
inconvocado
na pele adentro
espada ou forca
suor ou água
súbito vento
Morde uma aresta
desenfreada
na pele adentro
espinho ou lasca
álcool ou febre
maré do tempo
Lavra uma cifra
imensurável
na pele adentro
areia ou vidro
adeus ou rapto
na pele adentro
Da passagem do dia um só véu
pendurado na noite numa ilharga
Da música só o vulto de uma cítara
hesitante na saída ou na entrada
Da terra uma grande esfera de cheiro
dividida entre o recente e o antigo
Do mar só o silêncio numa dúvida
se chamar-lhe soturno ou noctívago
Da luz uma só claridade estática
porque o jorro ficou no céu suspenso
Do tempo só uma redonda estátua
porque é longe demais o movimento
Das palavras só o eco da presença
porque só as escuto em ondas vagas
Do teu e do meu corpo só memória
porque as formas se tornaram opacas
E agora no passeio uma só brisa
a movimentar as folhas de outono
Mas tudo isto foi só o interlúnio
mais nocturno que coube no meu sonho
Pesa tanto o infinito
a que me rendo dobrada
que o meu corpo é a versão
de uma casa abandonada
Onde no chão cresceu lodo
no tecto cresceram teias
no meio um vulto esmagado
do sangue das minhas veias
Todas as portas fendidas
sem que ninguém as transponha
todos os lustres quebrados
numa insónia medonha
Rasga-se uma claridade
na esquina mais escura
E um só deus vem segredar-me
ser a minha sepultura
Lentos os olhos
a percorrer a distância e o imediato
na pele que se reúne
Lentos os braços
a construir aquele amplexo
na pele que se confunde
Lentos os dedos
a redesenhar todas as formas
na pele que se desalinha
Lenta a saliva
que se dissolve ou não dissolve
na pele que se ilumina
Lenta uma palavra
que de tão expressiva
na pele se espalha e range
Lenta a própria pele
a emergir do imenso fluxo
da carne e do sangue
Permaneço
sobejamente alongada
nos sinais intermitentes
dos teus olhos
E lentamente
vou descobrindo cores
que nenhum arco-íris
me mostrou
E vou-me sustentando
nesses poços translúcidos
onde a água nunca seca
e sempre à tona
de mantém
Permaneço
E através dos teus olhos
vou recebendo a graça
de me ser transmitida
como onda hertziana
uma porção de paz interior
que te habita
Que me importa
outra sinalética do corpo
se só a dos teus olhos
me pode levar
ao templo sem tempo
da tua alma
Permaneço
Sem dúvida que tudo tem o seu princípio
Para aqui chegar basta acordar a consciência
Mas concretamente o que será necessário
para se conseguir chegar à grande essência
Por mais que me desfaça não desfaço
esta minha perplexidade já estigma
de sentir no Universo tantas vidas
de sentir em cada vida tanto enigma
Vejo-te quando eu morrer
a compor um poema
Não sei com que lágrima
não sei com que pena
mas creio que o farás
mais tarde ou mais cedo
não sei se em sobressalto
não sei se em sossego
Vejo-te deitado
sobre a nossa cama
não sei se em cinza
não sei se em chama
mas sei que estremeces
os braços de bruço
não sei se em surdina
não sei se em soluços
Vejo-te ainda
de negro vestido
não sei se incrédulo
ou se constrangido
não sei se argumentas
não sei se indagas
as faces visíveis
os versos das vagas
Vejo-te na sombra
e o poema calado
não sei se indolente
ou se inconformado
E não sei de que grito
tu serás capaz
e aos nossos filhos
o que lhe dirás
Vejo-te indeciso
sobre um patamar
não sei se absorvido
ou se a observar
a escada da vida
o degrau da morte
sei feito de nada
se troço de sorte
Mas vejo-te agora
lento e abstracto
deitar o poema
junto ao meu retrato
Não sei o que diz
de mim ou de ti
mas sei que ele existe
porque eu morri
Porque o teu corpo é verde quando o penso
e o teu silêncio é branco no meu sono
Porque os teus braços são grandes planícies
onde eu caibo em êxtase e abandono
Porque o teu torso é feltro que me nimba
e as tuas mãos são o sol da quentura
Porque o teu sorriso é um lustre acordado
e o teu coração é um lar de ternura
Porque a tua boca é a fonte mais pura
onde a sede me morre alegremente
Porque os teus olhos são caleidoscópios
onde o meu coração não se desmente
Porque és para mim a árvore infinita
e para ti eu sou a eterna flor
É que o tempo se alonga de joelhos
quando um de nós soletra Meu amor
Procuro no teu corpo
o silêncio suado
a rima dos teus olhos
o beijo ainda intacto
O som anasalado
o peito como aurora
a fundura dos dedos
o verso que se evola
Procuro no teu corpo
a densidade cúbica
a presença da pele
a memória da música
O tacto iluminado
a fronteira de abrigo
o feltro das palavras
o parto dos sentidos
É assim qualquer coisa que me transporta
como uma jangada ao sopro da brisa
por espaços que não sinto serem estranhos
e contudo não me lembro de os ter visto
E percorro as paisagens mais remotas
floridas nas madrugadas mais recentes
E rodam colinas e lagoas
vestidas de céu e transparências
É assim qualquer coisa que me leva
aos lugares onde nunca estive
onde reúno o que de mim se perde
e o tempo aberto cristaliza
Onde desço lentamente todos os degraus
da maresia enrolada nos búzios
Onde nas horas a fio são tangíveis
as rasgadas pálpebras das luzes
E é assim qualquer coisa me prende
nos arcos dos horizontes mais nimbados
Habito um templo entre o sonho e a cal
e habitam-me consonâncias e pássaros
Reencontro-me na amplitude do silêncio
reconheço-me na água que medita
E é desta qualquer coisa que renasce
a seiva que atravessa a minha vida
Em verde e branco sonho as asas
que levarão à Eternidade
num sol archote comovido
que multiplica a claridade
Tudo são lisas transparências
do cimo ao fundo das estrelas
tudo são gestos de crianças
a reuní-las e a acendê-las
Todo o caminho é uma escada
com degraus largos e polidos
E há um canto solene e insuspeito
a chamar ao cosmo os sentidos
Falta um degrau para a entrada
alargo o passo e colmato-o
Mas eis que acordo e vejo asas
a consumir-se em fogo-fátuo
Ilhas terraços
rosas incenso
barro moldado
parto sem tempo
O que há de novo
neste silêncio
Que se debruça
nos meus sentidos
com asas brancas
com sóis erguidos
Como se fosse
um interlúdio
cujos contornos
cujo conteúdo
de tão erguidos
quase me agarram
de tão alados
quase me escapam
E um longo claustro
do céu vidrado
E mais silêncio
a penetrá-lo
No que me mostra
mais o que esconde
deixa-me o espanto
deixa-me longe
de descobrir
o que há por dentro
desta planura
em movimento
Sem que se quebre
uma só torre
sem que se mexa
uma só folha
Sem que se saiba
se é cedo ou tarde
Sem que se veja
nuvem ou nave
que nos transporte
a um outro lado
Donde se aviste
o cais mais raro
a cor mais vaga
deste sossego
a luz mais límpida
deste segredo
Ilhas terraços
rosas incenso
barro moldado
parto sem tempo
O que há de novo
neste silêncio
O que eu sou no sol
entre o movimento da terra
é fácil de entender
O que eu sou na sombra
entre a paragem do céu
é o que que se confunde do meu ser
O que eu sou no sol
é tudo o que faço e não desfaço
é o óbvio que a luz espalha
O que eu sou na sombra
é um retrato a preto e branco
que a poeira amortalha
O que eu sou no sol
é um vitral escancarado
à flor da vida que avança
O que eu sou na sombra
é o conflito de eu ser mulher
e querer ainda crescer como criança
Sonho Sonhar é conseguir esvoaçar
em movimentos longos mas ágeis
de olhos fechados mas pupilas arregaladas
a ilimitar todas as paisagens
É poder fazer crescer uma ilha
sem memória de lá termos estado
e às margens actuais acrescentar
as antigas que têm forma de saudade
É habitar o sótão de uma casa
onde talvez nós tenhamos despido
mas nem lembramos em que tempo se situa
nem as escadas se revelam conhecidas
É assistirmos comovidos a um teatro
e reencontrarmos o cheiro grego
sem que na Grécia tenhamos pousado
um ombro um olhar ou um cotovelo
É vibrarmos ao som de uma música
que o tempo foi tornando gasta
mas no enledo com que escutamos
quase que a essência parece intacta
Sonhar é despir as roupas convencionais
e vestir apenas uma túnica de Verão
ainda que o Inverno nos procure os pés
e ameace já as nossas mãos
É fazermos uma caminhada devagar
e de repente identificarmos uma plaza
no centro de uma rua de Roma
sem sabermos a cor do chão de Itália
É reencontrar as coisas que perdemos
quando à idade não sobrou espaço
para as guardar em nenhuma gaveta
e servem-nos no sonho novo bálsamo
Sonho A vida requer que sonhe
E depois sonhar não custa nada
num lugar à toa numa hora qualquer
sobretudo se estivermos acordados
Tombavam musas
decapitadas
por entre os braços
das enseadas
rodavam dunas
sem rumo certo
a praia em cinza
o céu deserto
Numa voragem
rugia o mar
ondas fermentes
a remontar
Que descalabro
pela marginal
peixes e búzios
vagas de sal
um véu de bruma
zurze a cidade
Onde nascera
a tempestade
Num mar esdrúxulo
ou cais quadrados
De que remorsos
por que pecados
Fazes do meu corpo um templo
que cada vez mais o tempo
te ensina a contemplar
Há dias em renovas o templo
no tempo de um olhar
Minha vontade sem tempo
à sombra de luz nenhuma
minha cratera de orvalho
– Minha torre só de espuma
Minha ponte de querer
ir mais longe do que perto
meu eco em bifurcação
– Minha torre de deserto
Minha forma de cismar
rente à brisa matinal
Meu sonho azul ou dourado
– Minha torre de cristal
Minha loucura de querer
a rosa mais que o perfume
o meu corpo a estremecer
– Minha torre de ciúme
Minha raiva de não ter
sempre o grito em movimento
Meu silêncio embriagado
– Minha torre de ar e vento
Minha sede do passado
minha fome do futuro
Meu carrossel de memórias
– Minha torre de casulo
Minha ideia de compor
o que se perde por partes
Meu outono amargo e doce
– Minha torre de contrastes
Minha pena de não ser
menos ondas e mais asas
Meu papel e minha pena
– Minha torre só de palavras!
Há-de haver um dia
em que tarde ou cedo se apagará
o teu ou o meu sorriso
Mas que se acenda depois
na forma de outra boca
e que se rasgue de excessivo
Há-de haver um dia
em que as tuas ou as minhas mãos
fiquem das nossas vazias
Mas que o sangue lateje
ao longo das veias dos dedos
até à crença maior das nossas vidas
Há-de haver um dia
em que o teu ou o meu peito
deixarão de vibrar no amplexo
Mas que mudo ou trémulo o coração
translade as palavras mais puras
até ao eco no Universo
Há-de haver um dia
em que os teus ou os meus olhos
dirão não à luz da tarde
Mas que por dentro digam sim
a uma outra luz em qualquer lado
que dê indícios de eternidade
Há-de haver um dia
em que do teu ou do meu corpo
só haverá memória
Mas que pra lá do corpo
fique sempre a presença
da alma aberta e sóbria