Senhora da Conceição, valei-nos

Senhora da Conceição, valei-nos
Foto de Augusto Soares da Carvalhalva

por Augusto Soares da Carvalhalva

Quando era eu menino, já lá irão uns compridos sessenta anos, aí por volta de 1961, lembro-me bem, era por esta altura, Dezembro invernoso a tossir e a assobiar lá fora, …era depois da ceia.

Toda a família reunida, naquela cozinha enorme, duns doze por doze metros – o centro da casa e de tudo, até na amplitude da função social que representava, não só da família mas também dos amigos de casa que ali passavam os longos e divertidos serões de Inverno.

Sentados sob aquela centenária chaminé de saco, duns quatro por quatros metros que cobria tudo.

O enorme poial de peças inteiras de granito, com a pedra de tampo duns quase três metros de comprido, apoiada sobre dois pilares com a mesma largura do tampo, entre estes era o espaço para onde se iam empurrando as cinzas que aquela lareira gigante ia produzindo desde as seis da manhã até à meia noite, … ao fundo, à esquadria com o poial, da parede Sul, qual posto de vigia, logo a seguir às três bojudas panelas de ferro fundido, a maior a da água quente, espreitava, sempre disponível, a boca do forno, … e nós, avó, mãe, tios e netos, nos bancos distribuídos nos lados defronte ao poial e ao forno, do outro lado da fogueira, formando um ângulo recto, caras iluminadas pelas chamas que no centro de tudo estrelejavam um foguetório pegado de pirilampos de fogo, prontos para o habitual ritual destes dias de tempestades de Inverno, um ritual que minha avó herdou já dos seus avós, e em memória dos quais nos convencia a todos de quão era imperativo para a humanidade pedir a protecção divina contra todas as tormentas, … que naquele tempo eram tantas.

Era assim, logo aos primeiros trovões, a minha avó:

Vamos rogar a São Jerónimo e a Santa Bárbara Virgem as suas benditas protecções.

E todos, pondo a adequada cara séria, obedientes, em côro, primeiro a Santa Bárbara e depois a São Jerónimo:

Rogamos-te, Santa Bárbara bendita,
Esta oração que no céu está escrita,
Sobre pergaminho, com água benta,
Santa Bárbara, livrai-nos desta tormenta.

São Jerónimo se levantou,
Se vestiu e se calçou,
Seu caminho andou,
O Senhor encontrou,
“Para onde vais tu, São Jerónimo?”

Vou espalhar a trovoada,
Que no céu anda armada

Espalha-a lá para bem longe,
Onde não haja eira nem beira,
Nem raminho de oliveira,
Nem mulher com menino,
Nem vaca com bezerrinho,
Nem pedrinha de sal,
Nem nada que faça mal.

Após estas duas orações, silêncio, se a trovoada continuasse ia-se repetindo, mas já todos mais descansados, que a oração era certa e segura.

Para nós, os mais novos, estas religiosidades não eram coisa fácil, nunca mais acabavam, o que valia era a anestesia em que o sono depressa nos induzia, … e, ainda por cima, às vezes ainda vinha mais, entre outras, havia também a oração a Nossa Senhora da Conceição, … e quando vinha esta oração, sorrisos manhosos afloravam, sem excepção, no rostos de todos, até dos mais pequenos, que já sabiam da história de há uns trinta anos atrás, então, eram minha mãe e meus tios pequenos,… foi numa noite igual, de Dezembro invernoso, … logo a seguir às orações a São Jerónimo e a Santa Bárbara, foi conveniente também recorrer a Nossa Senhora da Conceição:

Aflita vos viste Senhora,
Aflita aos pés da Cruz,
Valei-nos Senhora agora,
Valei-nos mãe de Jesus,
Ó Senhora da Conceição,
Valei-nos nesta aflição,
Senhora da Conceição valei-nos,
Senhora da Conceição valei-nos,
Senhora da Conceição valei-nos.

Ora, então, tinha o meu tio António uns oito anos, e, mexido que era durante o dia, à noite, depressa a sonolência o distanciava da objectividade da oração, … de repente, o meu avô cutuca minha avó apontando o queixo para o António, dedo indicador sobre o nariz, a pedir silêncio, todos baixaram a voz, e então deu para perceber melhor o que nos três últimos versos da oração pedia o António à Senhora da Conceição:

Senhora da Conceição lambei-nos,
Senhora da Conceição lambei-nos,
Senhora da Conceição lambei-nos
“.

Escusado será dizer, toda a vida, daí para a frente, a oração à Senhora da Conceição era um caso de boa disposição, ninguém mais dormitava, um ou outro, disfarçadamente ia limpando a cara de alguma imaginada lambidela, … e parece que a Senhora da Conceição também terá achado piada, também deve ter sorrido, benevolente, pois sei que nunca nos faltou, sempre amiga da nossa casa.