A Romaria de Nossa Senhora da Saúde em Terras de Cambra (I)

A Romaria de Nossa Senhora da Saúde em Terras de Cambra (I)
Manuel de Almeida

(Publicado no nº 673 de 15.7.1999 da Voz de Cambra)  

Apesar de não ser muito antiga, a romaria de Nossa Senhora da Saúde em Vale Cambra, realizada todos os anos em 14 e 15 de Agosto,  é a mais conhecida e como tal a mais concorrida de todo o concelho.

Nesse dia, aí afluem milhares de forasteiros, vindos um pouco de todo o lado, com destaque para os da beira mar, sobretudo da Murtosa e Pardilhó, locais  onde a fé em Nossa Senhora se mantém bem viva, como recentemente podemos constatar.

Não está ainda  bem explicada a razão do aparecimento e desenvolvimento da fé no local.

Terão sido, no entanto, vários os factores que contribuíram para que o culto a Nossa Senhora da Saúde aí se implementasse e a saber:

Ø  Um será de cariz histórico e ligado à divulgação do culto de Maria a partir de 1640, como noutro lado já referimos.

Ø  Outro terá a ver com a fé da população e sua crença no divino. Como o sítio era inóspito, mas donde se vislumbrava vasto horizonte, até ao mar, ficaram reunidas as condições para a romaria se implementar e se tornar conhecida.

Ø  Um terceiro, e não menos importante, terá a ver, cremos nós, com a criação em 1774 da Diocese de Aveiro que, recorde-se,  teve jurisdição sobre o local até 1882 altura em que as paróquias de Cambra, que a integravam,  passaram para o bispado do Porto. É precisamente deste período que abundam os relatos, em forma de quadra e que se conhece a ligação dos povos da beira-ria à festividade. Este e outros Santuários, como o da Torreira, contribuíram para a projecção da novel diocese. Lembramos que foi no concelho de Cambra que apareceu compilado o maior acervo documental, para o século XIX, sobre o bispado de Aveiro (1).

Se a tudo isto aliarmos a convivência, o divertimento  e os negócios que eram propiciados entre as gentes da serra e as da beira-mar(2), parecem estar reunidas as condições para a romaria se projectar e se  tornar a eleita das populações. Recuemos, no entanto, no tempo à procura da génese deste culto.

1. AS ORIGENS DO CULTO A NOSSA SENHORA DA SAÚDE

O culto a Nossa Senhora da Saúde, em Portugal,  terá tido origem em Lisboa, no ano de 1570 e ao tempo do rei D. Sebastião. Nesse ano e após um rigoroso inverno foi a cidade assolada por um surto de “peste bubónica” ou do Egipto.

Os lisboetas morriam aos milhares. Estima-se que seriam entre 600 a 700 os mortos a quem  diariamente era necessário dar sepultura. Tarefa esta que ninguém queria efectuar com receio do contágio, tendo sido necessário recorrer, para tal fim, aos forçados da galés.

Sabe-se, contudo, que no início da primavera desse ano a calamidade estava controlada, pelo que se começaram a organizar procissões. Uma delas realizou-se no dia 20 de Abril de 1570 e foi em louvor de Nossa Senhora da Saúde, tendo nela participado todo o povo(3).

1.1.  A festividade em Lisboa

Apesar do despovoamento verificado, nos últimos anos,  nos bairros históricos de  Lisboa,  esta festividade continua a ser das maiores que se realiza no concelho. Antigamente, a festa e procissão eram a 20 de Abril e hoje num dos primeiros domingos de Maio.

A procissão percorre várias artérias da baixa lisboeta, nela se incorporando muito povo e sobretudo militares, representantes das unidades sediadas em Lisboa. Participação esta que remonta a 1662 e que terá interesse conhecer.

Referem as crónicas que, aquando daquela primeira procissão em 1570, e não havendo lugar para colocar a imagem de Nossa Senhora da Saúde, foi a mesma deixada à guarda da Igreja do Colégio dos Meninos Órfãos, à Mouraria.

Passados os anos e havendo divergências com esta Confraria foi necessário arranjar novo local para morada da santa. Ora, desde 1505 que nas proximidades os artilheiros de Lisboa tinham uma irmandade e uma pequena ermida, dedicada a S. Sebastião.  

Sabedores das divergências ofereceram o seu templo para a guarda da referida imagem. O convite foi aceite e no dia 20 de Abril de 1662, depois da costumeira procissão, a imagem foi conduzida ao templo, onde se conserva até hoje.

Trata-se de uma pequena ermida, localizada no largo do Martim Moniz, ali junto às portas da Mouraria.  A primeira construção datará do século XVI  e é mais um símbolo histórico e religioso da cidade de Lisboa.

Desconhecemos, no entanto, as motivações que terão levado, nos últimos anos, a  construir ali, mesmo pegado, um “centro comercial” de duvidoso gosto arquitectónico, que, parece-nos, nada veio contribuir para a dignificação e enquadramento do templo.

1.2. A procissão  no início dos anos setenta

Nos primeiros anos, da década de setenta deste século, verificavam-se, com regularidade anual, três acontecimentos na “baixa lisboeta” que enchiam o local de cor, alegria e gente.

Um era o dia do turista. Por alturas de Março ou Abril, logo de manhã, nas ruas apareciam raparigas vestidas de trajes regionais com braçados de rosas que ofereciam aos visitantes estrangeiros. Eram locais de eleição o Rossio; Terreiro do Paço e sobretudo o Elevador de Santa Justa.

Outro, prendia-se com a comemoração do 10 de Junho(4), que ocorria sempre no Terreiro do Paço, com a Tribuna instalada junto ao rio Tejo.

Também, manhã cedo as ruas eram “invadidas” de veículos militares e homens fardados, preparando-se para a cerimónia que haveria de ocorrer horas mais tarde.

Aí pelas 11 horas e durante o “acto solene” o céu era sobrevoado por aviões militares que espalhavam, aos milhões, “papelinhos” verdes e encarnados – as cores da bandeira nacional -, bem como panfletos exultantes do regime de então.

O terceiro, relacionava-se com  a procissão de Nossa Senhora da Saúde. Durante toda a manhã vários espaços eram vedados ao trânsito e começavam, mais uma vez, a encherem-se  de carros que transportavam homens e mulheres fardados. Eles eram militares.  Elas, sobretudo, enfermeiras e voluntárias da cruz vermelha e outras agremiações similares.

A meio da tarde tinha início a procissão. Saía da “capelinha” e dirigia-se para o Tejo até às imediações do Terreiro do Paço. Daí inflectia para o Rossio/Praça da Figueira. Subia a Avenida Almirante Reis até alturas do Intendente, regressando por esta Rua ao Santuário no Martim Moniz(5).

Era a procissão por excelência dos militares e do  então povo “típico” da Mouraria. Demorava várias horas a percorrer o trajecto e era o encanto dos turistas e demais forasteiros.

1.3.  A procissão no segundo domingo de Maio. Ano de 1999

Cerca das quinze horas e trinta minutos deu entrada no recinto a imagem do S. Jorge, em tamanho natural, montada em cavalo, vinda do Castelo com o seu nome, situado lá no alto. Vinha, este santo guerreiro, escoltado por força da GNR, em traje de gala, munida de instrumentos musicais e montada também a cavalo.

Por esta altura já as bordas das ruas, por onde ia passar o cortejo, encontravam-se apinhadas de gente, na sua maioria com mais de 50 anos. Também, junto ao Santuário se viam muitos militares (homens e mulheres), preparados para a cerimónia.

Eram 16 horas quando se iniciou o lançamento de foguetes e as primeiras imagens, colocadas em andores, transportados por militares, começaram a sair do pequeno templo.

Cá fora, posicionadas à sua frente, encontravam-se uma camioneta cheia de rosmaninho, a força da GNR, acima identificada, a escoltar o S. Jorge, e vários estandartes representantes de algumas irmandades da cidade de Lisboa e arredores.

Dirigiu-se a procissão para o Largo do Intendente. Daí inflectiu para sul, descendo a Avenida Almirante Reis, novamente Martim Moniz e Praça da Figueira. Aqui, virou para norte,  passando pelo Poço do Borratém, para regressar à  ermida, pelas 18 horas.

O CORTEJO

À frente vinha, como mencionado,  o camião do rosmaninho. Lá dentro encontravam-se  sentados alguns adolescentes que lançavam para o chão o aromático arbusto. Este era, quase de imediato, apanhado pelas gentes que aguardavam a passagem dos andores.

Seguiu-se a fanfarra da GNR, já antes identificada, Bombeiros e o Estandarte da Real  Irmandade de Nossa Senhora da Saúde e S. Sebastião. Nesta bandeira, vinham inscritas duas datas: 1570 – 1970, comemorativas do quarto centenário da procissão.

Nos andores viu-se o de S. Sebastião, transportado pela Força Aérea, o de Santa Bárbara pelo Exército e ainda o de Santo António(6), levado pelos Bombeiros. Junto a este seguia o Presidente da Câmara Municipal de Lisboa e demais edilidade. Mais atrás, com imagem imponente, N. Senhora da Saúde, rodeada de rosas. A fechar o  cortejo vinha o pálio e muito povo.

Todos os andores eram seguidos por bandas militares, dos diferentes ramos, que, espaçadamente, executavam trechos musicais enquadráveis na  efeméride.

Como notas de maior curiosidade terá interesse referir que, muito próximo deste santuário, fica o Hospital de S. José. Ora, ao passar aí o andor de Nossa Senhora da Saúde foi feita uma paragem e a imagem virada para o edifício. Seguiu-se uma pequena oração, ao que o cortejo continuou.

Também, um pouco antes do fim da cerimónia, houve uma espécie de homenagem feita pelo S. Jorge a Nossa Senhora da Saúde. Montado no seu cavalo branco, aquele santo guerreiro, foi levado à presença de Nossa Senhora.

Aí, frente a frente estiveram os dois santos durante algum tempo, enquanto a fanfarra da GNR executava um trecho e o povo escutava em silêncio.

                                                                                                            (Parte II)

Nota: – Na Voz de Cambra citada e segts foram publicadas fotografias das cerimónias acima descritas).

BIBLIOGRAFIA

 (1) – Vidé os nossos escritos publicados na Voz de Cambra nº 571 de 1/3/95 e sgts

(2) Vejam-se mais adiante algumas quadras e relatos  alusivos a esta convivência.

(3) – PIMENTEL, Alberto – HISTÓRIA DO CULTO DE NOSSA SENHORA DE PORTUGAL, obra já citada, pág. 181.

(4) – Era neste dia que o regime de então homenageava os seus cidadãos mais ilustres, nomeadamente os militares que combatiam em África. A última cerimónia deste teor, verificou-se em 1973.  Cumpríamos então serviço militar obrigatório e nessa qualidade também estivemos no local, destacados junto à Tribuna. Meses depois rumamos até terras de Angola.

(5) Todo este percurso fica na Lisboa medieval e pombalina. Hoje, a Mouraria, bairro medieval, situado abaixo do Castelo de S. Jorge, encontra-se muito degradado e perdeu a maior parte da sua população de origem europeia. A que lá vive está envelhecida, tal como as casas. Está a ser substituída por habitantes de origem asiática, sobretudo indianos. Dedicam-se a vários tipos de comércio, nomeadamente a quinquilharia.

(6) – Apesar de Lisboa ter o seu feriado municipal a 13 de Junho – dia de Santo António – não homenageia nessa data o seu santo padroeiro, que é o S. Vicente.

Manuel de Almeida