Trebilhadouro, arte rupestre, broa, desfolhada e serandeiros

por Alexandre Rodrigues, Arqueólogo

Trebilhadouro será um dos mais misteriosos nomes que conheci. É por si só uma lenda e um nome que esteve presente em toda a minha vida.

Era aquele lugarejo perdido na floresta de pinheiros que via do outro lado do rio Caima era, à noite, uma réstia de humanidade que se revelava através das ténues luzes na escuridão da serra.

Trebilhadouro, arte rupestre, broa, desfolhada e serandeiros
A cascata da Frecha da Mizarela na Serra da Freita, Arouca (Aveiro — Portugal).
Fonte: Alexander Hollstein — Obra do próprio, CC BY 4.0, 

Numa tarde de Verão, na companhia do meu avô Joaquim, estava sentado num muro à sombra de uma ramada.

Olhávamos a paisagem, contemplando a serra da Freita e todo o esplendor da Frecha da Mizarela, até os meus olhos se focaram na aldeia de Trebilhadouro, assaltando-me a estranheza de tal nome.

Perguntei-lhe se sabia por que motivo a aldeia se chamava assim.

“Três bilhas d’ouro… dizem que em tempos ali encontraram três bilhas d’ouro…” respondeu-me, também com o olhar perdido na serra defronte.

Não há mais história além daquela lacónica resposta do meu avô Joaquim.

A existir qualquer lenda ou conto, já se lhe não encontra o rasto. Ter-se-á perdido da memória e não haverá já quem a conte.

Cresci! O meu avô partiu, talvez com essa interrogação no coração. Volta e meia, o meu palpita ao escutar o nome.

Outras vezes pergunto-me se serão todos os tesouros de ouro? Metálicos? Materiais? Nem sempre. Qual o motivo das “bilhas” serem três e não duas ou quatro? Não se sabe!

A vida levou-me a encontrar muitas histórias sobre os tesouros das “mouras”, presentes em inúmeras lendas, e quase sempre ligadas à origem dos tempos e à fundação de tudo o que é precioso para uma comunidade.

Remontam às épocas em que tudo se transmitia pela voz, de geração em geração, como a maior riqueza que um homem poderia ter – o seu íntimo, o seu espaço familiar, a referência do seu território e da sua identidade.

Ver em ecrã grande
(Ver aqui, em pormenor, o nascimento do projecto)

Por força disso, tendo a encontrar aí resposta para o estranho nome.

Vejo-o explicado no sítio com arte rupestre da Sobidade quando me defronto com os estranhos símbolos marcados numa rocha de granito e, também, no túmulo do final do Neolítico que existe nas proximidades.

Talvez esses sítios sejam duas das “três bilhas d’ouro” que dão nome à aldeia.

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Gravuras rupestres da Sobidade em Trebilhadouro, Vale de Cambra (Aveiro, Portugal).
Fonte: “Rota da Água e da Pedra — Montanhas Mágicas” @ 

As memórias

Há alguns anos falei com a senhora Derminda Marques, uma das últimas habitantes da aldeia de Trebilhadouro.

Esperava-se uma conversa breve que acabou por se estender durante as várias horas em que contou as suas memórias da aldeia.

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Broa de milho, o pão tradicional da região de Vale de Cambra e que tem um festival na Aldeia de Paraduça, Arões — Vale de Cambra.

Trebilhadouro é uma dessas aldeias que nem uma dezena de habitações tem.

Nessas casas, normalmente com dois pisos, dividiam-se as vidas do gado e dos homens. Aos pés dos homens, das mulheres e das crianças, nos currais, habitavam vacas, cabras e ovelhas.

Nas “lojas”, uma das divisões multi-funcionais das casas, faziam-se alquimias com as uvas, transformando-as em vinho, preservavam-se cereais que se convertiam no pão de cada dia, guardavam-se as alfaias que rasgavam a terra fértil.

Era este o espaço onde outrora se entoavam as “cantarolas” que se faziam escutar até ao lado de lá do Caima.

Na Fonte, o ponto central da aldeia, era como se encantamentos enviassem, chamando os rapazes, tal e qual faziam as mouras encantadas das lendas.

Oh! Que lindo chapéu branco, naquela cabeça vai.
Oh! Que lindo rapazito… queres ser genro do meu pai?.

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Algumas casas de Trebilhadouro.

Nas eiras e nas casas, no início do Outono, quando se pressentia a desfolhada, era grande a azáfama no silêncio das letras marcadas nas cartas ou bilhetes que enviavam aos rapazes…

Temos desfolhada, se vocês quiserem vir há bailarico no fim…

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Cesto e espigas na desfolhada.
Fonte: Câmara Municipal de Vale de Cambra.

Pelo Carnaval, os poucos jovens que lá habitavam, iam ao baile a Porto Novo vestidos com roupas velhas e disfarçados com máscaras de papel feitas pelas próprias mãos.

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Os “serandeiros” no Carnaval de Vale de Cambra (cerca de 1960), mascarados com roupas velhas e com os rostos encobertos com máscaras feitas pelos próprios. 
Fonte: Arquivo Municipal de Vale de Cambra — Documento PT /AMVLC /FS/MCUL/004/3590 @ 

Por entre as voltas das danças, os rapazes que se atreviam a levantar as máscaras das moças, arriscavam-se a levar uma paulada do forte cajado do rapaz que “guardava” as raparigas das tentações dos namoricos.

Mais surpreendente ainda era a forma como iluminavam as casas durante a noite. Não havia petróleo e a vinda dos resineiros colocava todos, imediatamente, em alerta.

Mal tivessem possibilidade, as raparigas despachavam-se em apanhar os restos de resina que serviriam de vela e dar luz ao breu.

Essa “luz” era tremenda para sujar a renda que se entrelaçava ao serão, mas suficiente para aquecer a alma. Baixinho, sussurravam-se uns versos, ao escrever uma carta, ou para “maçar” o leite e fazer a preciosa manteiga.

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Uma leiteira no ano de 1900.
Fotografia de Augusto Bobone.
Fonte: Arquivo Municipal de Lisboa — Documento @

Até que as memórias das Dona Derminda chegaram a um dia em que já nem os sussurros na noite se ouviam.

As “cantarolas” ficaram guardadas no peito de quem deixa a casa em busca de algo melhor.

Alexandre RodriguesFonte