O Tabelião da Serra

O Tabelião da Serra
Manuel de Almeida

Aquando da leitura das escrituras da compra, venda e troca de terras dos Brandões(1) de Viadal e Gatão, fomo-nos apercebendo que já havia, desde o século XVIII, espalhados, pelas aldeias da Serra da Freita, vários indivíduos letrados.

Com efeito, eram eles que redigiam tais documentos e os assinavam. Eram todos homens. Um destes(2), era nosso bisavô materno. Já sabíamos da sua existência por lhe termos ouvido referências na família e noutros informantes, entretanto consultados.

Era conhecido – últimas décadas do século XIX – pelo “Tabelião da Serra”. 

Onde estas personalidades terão aprendido a ler e escrever é o que não conseguimos averiguar, com rigor. Como por nós antes referido(3), os primeiros professores destacados para a região só o foram em finais do século XIX.

Tudo aponta, no entanto, que terá sido junto dos párocos das diversas freguesias, uma vez que eram estes, no contexto aldeão, quem dispunha dos conhecimentos para tal.

2. Quem era então o Tabelião da Serra?

Chamava-se Custódio João Alves e era natural de Vilar, freguesia de Cepelos. Sabemos, pelo seu assento de casamento, ocorrido em 15 de Janeiro de 1874, que àquela data tinha 28 anos.

Terá nascido, por isso, cerca de 1846, ano em que não se encontram disponíveis, para consulta,  os Registos Paroquiais(4) de Cepelos. 

Era filho de José João Alves, alfaiate e lavrador, de Vilar e de Maria Tavares de Junqueira. Já a sua noiva, chamava-se de Rosária de Jesus, tinha cerca de 26 anos e era de Gatão, filha de Manuel da Costa e de Teresa de Jesus; ambos de Vilar.

Significativo, e então pouco usual, é que o noivo já tenha assinado o documento, juntamente com o pároco, Manuel Tavares de Gatão(5) e as duas testemunhas: – José Tavares de Sousa, casado, do Casal e José Tavares, solteiro, morador na Residência Paroquial. 

Viveu em Vilar, na casa, junto à presa do Barreiro, datada de 1846, que mais tarde veio a ser o local da “venda” do nosso tio Manuel Joaquim dos Santos e a quem já fizemos referências noutros trabalhos(6).

Era por aqui que passava o caminho de acesso às demais povoações da parte alta da freguesia de Cepelos; bem como daquelas lá mais acima, na Freita; nomeadamente Albergaria das Cabras, Cabreiros e Manhouce.

3. A prole de Custódio João Alves e Rosária de Jesus, sua esposa.

O casal teve cinco descendentes, a saber:

a) Maria Rosa de Jesus, nascida a 29 de Novembro de 1878, casada em 1900 com Joaquim Fernandes dos Santos(7), de Função.

Estes eram os nossos saudosos avós maternos que tiveram, entre 1902 e 1920, os seguintes filhos:
– Beatriz, António, Custódio, Manuel Joaquim, Palmira, Joaquim, Serafim e Madalena, a nossa mãe.
Já são todos falecidos na presente data.

Viviam no meio do lugar de Vilar e tinham uma casa de habitação grande para época, já com sala e dois quartos.

Como nossa avó era crente e generosa havia sempre, na sala, a que se acedia também por escadaria exterior, uma caneca com vinho(8) e broa à disposição de quem os visitasse ou tivesse necessidade de alimento.

Temos na nossa posse, com muita estima, a referida caneca. É da fábrica Sacavém. Embelezam-na, por fora, uma estátua equestre, uma torre e umas ramagens cor de vinho. Estão muito esbatidas, devido à sua já longa idade(9) e muito uso.

Como tinham bons campos de cultivo de milho e centeio recorriam muito às tarefas agrícolas de cariz coletivo, de que destacamos a semeia do milho, aí por Maio, a ceifa e a malha do centeio em Julho.

Apesar do trabalho árduo a altura do jantar, hoje almoço, servido no campo era um grande momento de convívio e alegria.

No nosso conto “O Tesouro da Fonte de Gatão”, descrevemos uma cena passada nas Felgueiras em que nos inspiramos nessas vivências de antanho.

b) Rosa de Jesus, nascida a 29 de Março de 1880 e falecida na freguesia de Roge em 23 de Junho de 1950. Casou com Manuel Tavares de  Pinho de Função.

O casal deve ter vivido inicialmente em Vilar, já que aí nasceu, em 1911, o seu filho Manuel(10) e depois em Função. Supomos que deixou aqui mais descendência. 

c) Outros, que morreram crianças ou jovens e que não constituíram família: – Manuel nascido e falecido em 1874; Manuel (outro), n. em 1882 e f. em 1883 e ainda Rosária, n. em 1884 e f. em 1901.  

4. As escrituras redigidas por Custódio João Alves. 

Terão sido muitas as escrituras e cartas que Custódio João Alves terá escrito ao longo das várias décadas da sua existência; daí o ser conhecido pelo “Tabelião da Serra”.

Faremos referência somente a algumas que são do nosso conhecimento, a saber:

. Relativas aos Brandões de Viadal e Gatão entre os anos de 1889 e 1908;

. Procurador bastante de Celestino dos Santos, de Viadal, ausente nos Estados Unidos do Brasil. Ano de 1908.

. Padrinho de batismo de crianças e várias vezes testemunha em casamentos; bem como na compra, venda e troca de bens. Em 1884 é testemunha no testamento que José Tavares de Viadal faz da doação dos seus bens a vários familiares, nomeadamente aos filhos que ficaram de Maria do Quintal.

. Extrato de partilha do tempo de moagem do Moinho do Rão em Viadal.

Temos na nossa posse a tradução dactilografada de um documento, datado de 1835, relativo ao tempo de moagem no Moinho do Rão, em Viadal,  que já nos levou a um engano em apontamento sobre este nosso ascendente.

Com efeito, no cabeçalho consta o seu nome e o de Manuel Alves de Vilar, também letrado. Ora, tudo leva a crer que seja uma cópia que os dois terão feito do original, aí para finais do século XIX e não a redação inicial, que é anterior ao nascimento de Custódio João Alves, cerca de onze anos depois.

Assim, na Voz de Cambra das 1ª/s quinzena de Fevereiro  e Abril de 2014, onde se lê “primeira metade  do século XIX”, deve ler-se “finais do século XIX”. Também no pé de página nº 7, onde se lê Custódio José João”, deve ler-se Custódio João Alves. 

No pressuposto que possa vir a ter interesse histórico, aqui deixamos uma súmula do referido documento.

A DIVISÃO DO TEMPO DE MOAGEM NO MOINHO DO RÃO EM VIADAL. ANO DE 1835.

. Terça-feira pertence a Joaquim Ferreira;
. Quarta-feira a Manuel Francisco;
. Quinta-feira pertence a Manuel Fernandes;
. Sexta-feira a Manuel Filipe;
. Sábado a Manuel Cintro;
. Domingo pertence a Caetana Soares:
. Segunda-feira nos herdeiros, quatro horas a cada um, a principiar por Caetana Soares.

Mais se dispõe ainda que não havendo água no rio Caima para se tapar “corta-se a água dos lameiros, se os proprietários dos lameiros tirarem a água do moinho e este parar têm a pagar uma multa de quatro cruzados da primeira vez, oito da segunda vez, e da terceira vez doze cruzados”(11).

5. Dois nomes a mesma pessoa?

Consultando os apontamentos que ao longo dos anos fomos fazendo sobre Custódio João Alves, bem como os Registos Paroquiais da freguesia de Cepelos, somos levados a crer que este também seria conhecido por Custódio José João.

Com efeito, verificamos que um determinado indivíduo podia ser conhecido por mais do que um nome. Isso mesmo aconteceu com o seu pai,  em 1886, em que foi testemunha de um casamento em Vilar.

Aí, na redação do documento o pároco, Manuel Tavares, chama-lhe José Alves João, mas no fim,  sítio da assinatura,  em que o assinante apôs uma cruz, já lhe atribui o nome correto de JOSÉ JOÃO ALVES.

Refere-se que não havia, como hoje, rigidez normativa nos registos que eram feitos pelos párocos. Muitas vezes, sobretudo nos assentos de óbito, era mencionada a alcunha ou nome de família por que o mesmo mais tinha sido conhecido.

Era normal também as crianças do sexo masculino adotarem o apelido paterno e as do sexo feminino o sobrenome da mãe. Disso são exemplo os nossos tios e tias maternos em que eles são Santos e elas Jesus; caso da nossa mãe – Maria Madalena de Jesus –  ou Tavares, nomeadamente a tia Palmira.

Até nosso pai, Manuel Domingos de Almeida, nascido em 1918, filho de António de Almeida de Paço do Mato e de Ana Fernandes de Viadal, era conhecido não pelo nome próprio, mas por “tio Fernandes”, o apelido da mãe.

Noutras situações em que o nome do filho era igual ao do pai, os párocos, para os distinguir, aditavam a palavra “Novo”, para o mais recente.

Também nos foi dito que o mesmo teria estado no Brasil. Tal não parece confirmar-se. Quem se lá radicou foi o seu neto Manuel acima identificado. Um outro, de nome Custódio, carpinteiro, irmão de nossa mãe, também la viveu uns anos. Faleceu em Lisboa, no hospital, em 1953, aquando do seu regresso definitivo; conforme se encontra anotado no seu registo de nascimento. Tal facto era do nosso conhecimento. 

ANOTAÇÕES
(1) – in VC, 2ª Abril de 2017.

(2) – Aos outros, faremos referência, mais detalhada, em escrito autónomo, a intitular: – Os Letrados da Freita.  

(3) – Ver a Voz de Cambra da 2ª quinzena de Nov. de 2013; 2ª Janeiro, 2ª Março de 2014; 2ª Novembro, 2ª Dezembro de 2017 e 1ª Fevereiro de 2018; e/ou no blog RIBACAIMA.

(4) – De acordo com informação escrita, colhida junto do Arquivo Distrital de Aveiro, estão por localizar os livros referentes aos seguintes anos:
. Batismos: – Ano de 1816 até ao ano de 1857;
. Casamentos: – Ano de 1744 até ao ano de 1847;
. Óbitos: – Ano de 1747 até ano  de 1841.

(5) –  Paroquiou a freguesia durante algumas décadas. Deve ter nascido em Gatão em 1812 ou 1813, já que faleceu em 1889, em Ovar, com cerca de 76 anos. Foi sepultado em Cepelos. Era filho de José Tavares e de Maria Tavares.

(6) – in, pé de página da VC da 2ª de Março de 2014.

(7) – A sua família, em Função, era conhecida pelos “Touticeiras”.Nosso avô nasceu em 11 de Julho 1878 e faleceu em 31 de Março de 1965. Era filho de Francisco Fernandes e de Maria Tavares. Nossa avó  faleceu em 18 Março de 1963.

(8) – Ainda nos lembramos de duas das castas: – verdelha e amaral. Outra, a mais comum, produzida à parte, era a americana. Crescia pelas árvores acima, mesmo nos lameiros, junto às ribeiras/corgas e ao rio Caima.

(9) – Temos também um prato, partido, aparentemente com a mesma cena. Este tem uma marca na parte exterior em redondo com o nome GILMAN – Sacavém – nº 3.

(10) – Seguiu para Santos no Brasil, onde casou, em 1937, com Joaquina Fernandes de Pinho, conforme consta do seu Registo de Nascimento/batismo, ocorrido em Janeiro de 1911.

É provável que tenha sido o proprietário da casa, no Ribeiro, onde funcionou a Escola. (In, pé de pág. nº 4 da VC da 2ª  de Janeiro de 2014).

(11) – Mais tarde, inícios do século XX, havia lá mais um moinho que ainda não conseguimos localizar.
Na Voz de Cambra, da 1ª quinzena de Março de 2018, encontra-se publicada uma foto, do referido moinho, datada do ano de 1984.

Fotos
Casa da Venda em Vilar. Ano de 2016.
(Aqui viveu o Tabelião da Serra).
Caneca da Fábrica Sacavém.
Foto do ano de 2018.

O Tabelião da Serra
Caneca da Fábrica Sacavém
O Tabelião da Serra
Casa onde viveu, em Vilar, o Tabelião da Serra