Meu amigo Dostoievsky


Meu amigo Dostoievsky nada temos a ver aparentemente
um com o outro a não ser o nosso encontro pelos meus
dezoito anos
Apetece-me chorar ao recordar as noites em que à luz de um
foco olho de boi debaixo dos lençóis para que minha mãe
não visse eu invadia os teus livros numa das maiores e mais
deliciosas aventuras da minha vida
Ainda hoje me são familiares o rosto de Sónia e a figura
de Raskolnikov luz mítica e mística dos que têm coisas em
comum orientando-se na direcção do símbolo e do mundo
sem forma
Da mesma forma que te marcaram Balzac Schiller Victor
Hugo e Goethe tu imprimiste em mim a sensação que te
fez desmaiar perante a beleza de Seniavina na casa dos
Wielgorsky e eu não sou homossexual meu caro Dostoievsky
Perante a beleza eu não sei ao certo onde pára o sexo se no
esperma de Úrano derramado no mar se na poesia da Morte
em Veneza
Não é a realidade física que interessa ao simbólico mas o
significado do sexo na imaginação
A dualidade do ser funde-se na tensão interna de quem ama
e a união sexual não é mais do que o apaziguamento da
tensão interior
Nunca te concebi humano sobretudo depois dessa manhã de
rosto de pedra e gelo em que viveste o mais trágico minuto
da tua vida
Um vento glacial varreu-me a fronte ao ouvir o teu nome
na chamada para a morte Akcharumov! Shaposhnikov!
Dostoievsky
Hoje depois de ter amado tanto aceito a tua epilepsia como
o estigma mais marcante da pureza da condição humana e
passei a considerar-te meu irmão para o resto da vida
Por isso me senti prisioneiro quando entrei na fortaleza de
S. Pedro e S. Paulo e por isso chorei na Praça Semenovsky
onde viveste uma vida inteira em dois minutos de morte
Era como se fosse eu o condenado
Também chorei quando reencontraste Suslova apenas pelo
que sofreste ao ver que o amor não se repete
A noite e o vazio estão na origem cosmológica do mundo e o
amor é uma criança que cresce…e deixa de ser criança
Amor e morte quando descobertos acordam e fogem
Para escrever bem é preciso sofrer disseste um dia ao jovem
Merejkovsky quando a vida confundia as chamas do teu
inferno com relâmpagos de visionário
Sofrer pode ser apenas sorrir… frente a toda a utopia
palpável não paranóica nem delirante
Foi a mim que o disseste meu caro amigo foi a mim que
o disseste na tarde cinzenta da tua morte na hora da
hemorragia que te vitimou
Até hoje ainda não te agradeci
Perdoa não ter acompanhado o teu féretro mas nessa altura
eu não existia… ou será que te acompanho ainda hoje neste
pesado caminho do fim