por Augusto Soares da Carvalhalva
Naquele tempo, era eu estudante em Oliveira de Azeméis, entrando Novembro era a hora, na Mata do Côvo os medronheiros estavam no ponto máximo da sua maturação, só de pensar naquelas bagas de vermelhidão doce a coisa acontecia, eram 11 quilómetros de caminho, a pé, … mas a tradição é que mandava, que as tradições tem de ter continuidade.
Escolhia-se o dia mais propício, em que o horário das aulas da tarde fosse menos completo, para que a “gazeta” às aulas dessa tarde não desse muito nas vistas.
Logo na viagem da manhã no autocarro desde Vale de Cambra, nas Camionetas Amarelas, do Sr. António Cândido, como então eram designadas, combinava-se tudo.
Para se ganhar tempo, logo após a última das aulas da manhã, era uma corrida até à Padaria Oliveirense, ali defronte do Jardim, já perto da esquina onde tomávamos a estrada para Vale de Cambra, era aí o nosso almoço.
À pressa cada um de nós engolía a sua sandes de triga milha com marmelada, com a triga milha ainda morna, era uma delícia que ainda hoje tenho bem presente, aquele aperitivo para a barrigada de medronhos que nos esperava dentro de uma hora.
E lá começava a aventura, com o Mário, o mais graúdo de nós, a timoneiro, os restantes, Eu, o Zé Duarte, o meu primo, António Jorge, o Joaquim Pax, e, às vezes – embora contra a tradição, que nós é que eramos os verdadeiros homens de montanha, e eles uns azeiteiros de terra plana que já pertenciam ao concelho de Oliveira de Azeméis – autorizavamos um ou outro de Ossela a vir connosco.
De guarda-chuva ao ombro – que naquele tempo Novembro era de bastante chuva – enfiado na asa da pasta onde jaziam esquecidos os livros das disciplinas do dia, lá seguia alegre e brincalhão o grupo, caminhando e correndo, brincando, afinal, com a aventura séria dos homenzarrões de treze anos que éramos.
O primeiro troço era rápido, Cidacos, Quinta do Côvo, era sempre plano e a descer até à ponte sobre o rio que vinha dos lados de Pinhão. Aí, entravamos num percurso em corta-mato de subida íngreme que, quase no alto, desaguava em pleno Medronhal, era ir caminhando e comendo, para não se perder demasiado tempo, que as tardes de Novembro eram já bem curtas.
As mãos, gulosas, rapidamente, primeiro viravam aguarelas de vários vermelhos, depois, no fim da barriga cheia, num tom já mais apurado, igual à sombria pintura dos lábios, era uma esborratada pintura arroxeada, … nunca assim houve um baton tão brilhante e retinto de roxo.
Lá no alto, a retomar a estrada, à vista de Vermoim, já bem mais lentos, talvez já a fermentação dos medronhos a fazer alguns efeitos, uma apressada reunião a traçar objectivos, a preocupação era agora com o relógio, que para o bem de todos a hora de chegada a casa era sagrada. Até Ossela era a andar bem, se estávamos com tempo ainda dava para parar um pouco à conversa na loja dos pais do Ilídio.
O mais tardar às quatro da tarde, em “frente marche”, subida difícil até às Baralhas, depois sempre a descer, agora já com o vigor com que a visão das nossas verdes montanhas nos fortificava o ânimo.
Chegados à Ponte da Gandra, que tinha de ser um pouco antes da hora da chegada da Camioneta que nos traria, antes da despedida, a preocupação era o disfarce dos inevitáveis sinais da jornada, … ah, como era tão difícil retirar das mãos e da boca aqueles “horrorosos” tons de roxo seco.
Depois, a parte mais complicada da aventura só a saberíamos no dia seguinte, quando uns perguntavam aos outros: Como era possível que em casa adivinhassem que tínhamos faltado às aulas da tarde da véspera?