Como se fazia a manteiga

O Touço
tecnologia artesanal na transformação do leite
Como se fazia a manteiga
Como se fazia a manteiga

Em 1865, o cambrense Bernardo José de Souza levou à Exposição Internacional do Porto um frasco de “manteiga de vacca” revelando ser, além de uma estratégia de expansão do negócio, um indício da excelente qualidade desta manteiga.
(Catálogo official da Exposicão Internacional do Porto, 1865:38-43)

Dizia-se já na altura que a fabricação de manteiga tinha “tido mais algum desenvolvimento nos concelhos de Arouca, Cambra e Sever; nos restantes concelhos pouca manteiga se fabrica…“, embora revelando que os processos da sua fabricação não havia melhorado.

Também se notava que “N’aqueles concelhos era de summa importância a organização de sociedades cooperativas de produção para o fabrico de manteiga…(Archivo Rural 1874 [Em linha], 19-08-2011:129), uma vez que a proto-indústria em desenvolvimento contava apenas com o contributo dos pequenos produtores de leite que se espalhavam pelas serranias e pelo Vale de Cambra.

Foram estes manteigueiros, os lavradores, que forneceram as primeiras fábricas de Vale de Cambra, como é o caso do Martins & Rebello (estabelecido em 1896) (Ralo, J. A. C., 1953:165) e a Fábrica de Lacticínios do Valle de Cambra, produtora da premiada Manteiga Alliança. (Jornal de Cambra, 1908)

Nestes primórdios da produção de manteiga, o concelho de Macieira de Cambra, encabeçava já a lista dos que mais a produziam, com cerca de 23.500,8 Kg anuais de manteiga de leite de vaca. (Caetano, L., 1989-1990:106)

Era extraordinária esta capacidade produtiva… no século XIX, faziam escoar o seu produto, ao preço variável entre os 360 e os 400 réis por Kg, por intermédio de mercadores de fora do concelho que faziam bancada no Porto, Coimbra, Aveiro, Figueira da Foz, Viseu, Guarda e Covilhã, havendo anos em que a mesma era exportada. (Caetano,Ln,1989-1990:106)

Mas a tradição transformadora do leite em Cambra não se fica unicamente pelo século XIX.

Ainda lhe encontramos eco em tempos bem mais recuados, bastando para tal consultar o Foral de Cambra para ficarmos a saber que, já no século XVI, a produção da manteiga era de tal ordem importante que constava em cerca de 25 rendas, pagas em quantidades que variavam entre os quartilhos e as canadas.

Além dessas, quem transportasse “queijos sequos” e “manteiga salgada” pagava oito reais (Foral de Cambra, 2004:41), ficando isento dessa portagem todo o leite e “cousas delle que sejam sem sal“. (Foral de Cambra, 2004:39)

Como se fazia a manteiga

Tudo começa junto ao curral, no tratamento do gado, cujo efeito no leite é determinante na produçāo dos derivados, sejam eles manteiga ou queijo…

A região de Vale de Cambra, fazendo parte do solar das vacas de raça arouquesa, sempre a elas recorreu para o trabalho e lhes extrair o precioso leite.

Não poderia a região estar mais bem servida neste aspecto, beneficiando de gado bovino perfeitamente adaptado aos contrastes do terreno, aos esforcos que eles acrescentam ao trabalho agrícola e ao transporte de cargas no “carro de vacas”.

O leite que produziam, concentrado, rico em matérias gordas, por o terem em menor quantidade que a vaca turina – por cá introduzida a partir de meados do século – era o mais indicado para a principal actividade transformadora do concelho de Vale de Cambra: a manteiga.

As “vacas serranas“, como ainda hoje são conhecidas, deambulavam por montes, campos e caminhos, rapando ervas, flores, silvas, palha seca e tudo quanto lhes apaziguasse a fome, definindo as peculiares características que tornam cada leite único.

Mas havia também que as guardar da noite predadora, do frio e dos furtos.

Para isso, a maioria das habitações possuía dois andares… o térreo para o curral dos animais e, por cima, o espaço humanizado pelo quotidiano familiar.

Se o acaso assim não desenhava o lar, ficavam num anexo próximo ou, distantes, por baixo de palheiros que iam estrategicamente pontilhando os campos e as ribeiras.

Fosse como fosse, era nesse espaço – o curral – que se obtinha o precioso leite… a vaca pensada com erva viçosa, bem lavada a lata e o mocho, bem assente no estrume, era tudo quanto necessário para habilidosamente se aliviar, à vaca, o peso do úbere.

Como se fazia a manteiga

Pela manhā, as tradicionais tigeladas de leite com broa eram um dos principais preparos do pequeno-almoço, apreciado por miúdos e graúdos.

Comia-se” assim o leite, havendo variadas formas de o fazer, tantas quantas a imaginaçāo e o gosto permitissem.

Era na cozinha que, junto à lareira e recorrendo à bilha e ao touço, se maçava o leite deixado de véspera a desnatar e azedar sobre o poial.

E ao longo do serão, animado pelo bater do touço, transformava-se a nata em grão que no final do processo se juntava num alguidar redondo contendo água limpa e fresca.

grāoamassado e sucessivamente passado por água limpa e fresca, formava uma broa de manteiga que se salgava, e à qual todos os dias se acrescentava nova remessa até ter uma dimensão vendável… normalmente o acumular de uma semana…

A partir do momento em que se disseminaram os postos de desnataçāo do leite pelos lugares, a prática de maçar o leite reduziu-se à produçāo doméstica.

Cabia à leiteira ir de casa em casa recolher o leite, transportando-o em bilhas até ao posto onde era decomposto em nata e leite magro.

Esse último era devolvido à leiteira e entregue, na mesma proporçāo,aos seus “fregueses”.

Na nossa regiāo, o queijo foi uma inovacāo já industrial, posterior aos anos 30, embora houvessem tentativas para o produzir em data anterior.

Mesmo artesanalmente, é um processo mais complexo que o da manteiga.

Havia que obter um desnate parcial do leite, mantendo-o em repouso e a temperatura baixa para que não azedasse.

Posteriormente juntava-se ao leite, já aquecido, o coalho -que tanto podia ser flor de cardo moída, como pedaços de estômago de cabrito.

Retirava-se essa coalhada para um pano colocado sobre a francela, formando um saco que comprimido a dessorava.

Essa massa era colocada depois no acincho, o aro de metal que dá a forma ao queijo, que depois de cheios iam repousar num suporte para queijos para escorreremsecarem, se salgarem e maturarem, ficando pronto para o consumo ao fim de algumas semanas.

O propósito desta exposição é trazer aos nossos tempos práticas antigas de fazer a manteiga e o queijo, não fosse esta prática assunto que muito diz a Vale de Cambra.

Não será excessivo pois, relembrar que a produção da manteiga era uma das principais actividades económicas do concelho já no século XIX, como refere, por exemplo, (Archivo Rural 1874 [Em linha], 19-08-2011:129)

Nesta vertente, Vale de Cambra afirmou-se – cada vez mais – no contexto regional como o maior produtor de lacticínios por via do desenvolvimento de uma indústria que contou com o indispensável apoio dos pequenos produtores de leite que se espalhavam pelas serranias em torno do vale.

No entanto, nesse mesmo Archivo Rural, não se deixa de referir que os processos de fabrico padeciam de melhorias e que seria importante a organização de sociedades corporativas que levassem à melhoria dos procedimentos (Archivo Rural 1874 [Em linha], 19-08-2011:129)  

“(…) Os processos da sua fabricação é que não têm melhorado. N’aqueles concelhos era de summa importância a organização de sociedades cooperativas de produção para o fabrico de manteiga…”

Fosse como fosse, o cambrense Bernardo José de Souza levou à Exposição Internacional do Porto de 1865 um frasco de “manteiga de vacca” (Catalogo official da Exposição Internacional do Porto, 1865:40), o que nos parece um indício da excelente qualidade desta manteiga visto que, a concurso nesse certame, só encontramos uma “amostra de manteiga” oriunda de Santo Tirso (Catalogo official da Exposição Internacional do Porto, 1865:38) e “uma caixa de lata com manteiga de vacca” (Catalogo official da Exposição Internacional do Porto, 1865:43) proveniente de Évora.

Estes manteigueiros, os lavradores, forneceram as primeiras indústrias de lacticínios de Vale de Cambra, como é o caso da fábrica de Martins & Rebello (estabelecida em 1896 (Ralo, J.A.C., 1953:165) e a Fábrica de Lacticinios do Valle de Cambra que, desde 1908, vem anunciando no Jornal de Cambra a sua Manteiga Alliança como vencedora da medalha de ouro na Exposição Agrícola de Lisboa de 1905 e o seu estatuto como fornecedora da Casa Real… não fosse a fabrica “… a de maior producção do continente…” (Jornal de Cambra, 1908c).

Vendiam a manteiga a intermediários, que a distribuíam pelos centros de consumo embalada em tijelas de barro, cestos de vime ou latas (Ralo, J.A.C., 1953:164).

A estes primórdios da produção doméstica de manteiga, Lucília Caetano, a propósito  do Inquérito da Repartição de Pesos e Medidas (1865), refere a importância que essa actividade representava para as populações, colocando o concelho de Macieira de Cambra à cabeça dos que mais produziam este derivado do leite, com cerca de 23.500,8 Kg anuais de manteiga de leite de vaca, cabra e ovelha (Caetano, L., 1989-1990:106).

É extraordinária esta capacidade produtiva levada a cabo pelos donos dos animais que, no século XIX, faziam escoar, ao preço variável por quilograma entre os 360 e os 400 réis, o ser produto por intermédio de mercadores de fora do concelho que faziam bancada no Porto, Coimbra, Aveiro, Figueira da Foz, Viseu, Guarda e Covilhã, havendo anos em que a mesma era exportada (Caetano, L., 1989-1990:106).

Essa exportação encontrava o seu canal de escoamento privilegiado pela estação de caminhos de ferro de Estarreja, calculando-se que de Cambra saíssem anualmente (1876-1877) cerca de 40.000 kgs de manteiga embalada, cuja produção se fazia aqui e nos concelho vizinhos (Ralo, J.A.C., 1953:164).

Mas a tradição transformadora do leite em Vale de Cambra não se fica unicamente pelo século XIX.

Ainda lhe encontramos ecos em tempos bem mais recuados, bastando para tal pegar no Foral de Cambra (1514) para ficarmos a saber que, já no século XVI, a produção da manteiga era de tal ordem importante que fazia parte de um número considerável de rendas.

Além dessas rendas, quem transportasse “queijos sequos” e “manteiga salgada” pagava oito reais (, 2004):41).

Estava isento do pagamento dessa portagem, todo o leite “nem cousas delle que sejam sem sal” (, 2004):39).

As horas passadas junto à  lareira a maçar o leite no touço, as delícias, antes de ser manteiga, desse leite maçado barrado no pão.

A canseira de descer a serra e na feira vender a manteiga ou entrega-la na fábrica.

E o que dizer dos trabalhos em que se meteu um tal de Augusto de Oliveira que acabou capturado no Muradal por furto da manteiga em falta da banca do sr. José Fernandes Cubal, negociante da praça da Gandra? (Jornal de Cambra, 1908c):3).

Não escapou o evento à Gazetilha assinada por um tal Argus que, nesse mesmo jornal (Jornal de Cambra, 1908c):1), não perdeu a oportunidade de satirizar sobre o roubo da manteiga e um outro do manto da Virgem da ermida de La-Salette.

Como se não bastasse este roubo de “praça”, nem a Fábrica de Lacticínios do Valle de Cambra escapou a uma prática que, ao que parece, ocorria com alguma regularidade.

Por arrombamento, noticia-se  que os “larápios” fizeram desaparecer 25Kg de manteiga, embaladas numa lata de 10Kg, duas de 5Kg e uma de 0,5Kg, com tampa móvel (Jornal de Cambra, 1908b).

Neste rol, ainda há espaço para a tragédia que afectou dois jovens manteigueiros, António e Engrácia Fernandes, moradores na Ribeira de Castelões.

Ambos carregando cestos de manteiga com destino ao lugar dos Salgueiros (Ossela), por alturas do lugar da Mouta, acidentalmente fez o rapaz disparar a espingarda que um indivíduo de Cavião lhe entregara, ferindo mortalmente Engrácia (Jornal de Cambra, 1908a):2.

Existem assim vidas ligadas à produção de um dos produtos locais de maior expressão.

Não deixa de ser curiosa a ausência do queijo não só no noticiário do dia-a-dia, como na bibliografia disponível.

Limitava-se, em Vale de Cambra, a produção de lacticínios à manteiga?

É uma questão que importa esclarecer, porque todos os indícios apontam para a prevalência de manteigueiros e não de queijeiros, expressão muito usada para os operários das fábricas de lacticínio (Martins e Rebelo e Lacto-Lusa)

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