Um galinheiro em Viadal, cerca de 1960

Um galinheiro em Viadal, cerca de 1960
Manuel de Almeida

Até à década de cinquenta do século que findou as aldeias da Serra da Freita, viviam, pode dizer-se, com os costumes e valores do século XIX.

Contudo, com o rasgar das estradas, a chegada da luz em finais de 1965, a emigração e a guerra colonial, um mundo diferente começou a emergir. Fazendo foco na freguesia de Cepelos, constata-se que, com a ligação por asfalto do Porto a Viseu, com passagem pelo sítio da Pontinha, os viajantes foram deslocados para esta via, com o abandono da milenar “estrada romana” por Manhouce e planalto da Freita.

Talvez imbuídos, primeiro, pelas ideias do Estado Novo e depois pela dinâmica do padre Correia, vêm-se instalar na Pontinha duas serrações, posto de leite, forja, alguns estabelecimentos comerciais e uma feira mensal, chamada dos 16. Esta, aí por volta de 1954.

Das casas comerciais destacavam-se a padaria, duas lojas de bebidas e bens alimentícios, chamadas de vendas, e outra de comes e bebes (1), sobretudo aos dias de feira e fins de semana.

Era proprietário ou arrendatário desta António Fernandes, também dito de Matos, natural de Carvalhal do Chão, casado com a tia Lina e residente em Viadal.

Era empreendedor o tio Matos, já que também negociava em madeira, vendia nas festas das aldeias, os famosos pirolitos e, mais importante de tudo, fundou um galinheiro com fins comerciais, que, julgo, terá sido o primeiro na freguesia, senão mesmo na Serra da Freita.

Disseminou também a plantação de eucaliptos, árvores estas de que existiam poucos exemplares, embora de grande porte em Viadal e Vilar.

Uma era da nossa família no sítio do Chão do Moinho e umas duas ou três à entrada de Vilar, antes de se chegar ao Rio.

Estas duas últimas atividades – aviários e plantio de eucaliptos – vieram a revelar-se bastante rendosas nas décadas seguintes, como é sabido.

Era o tio António ainda agricultor, mas desta atividade são-lhe conhecidos poucos atributos, já que era tarefa quase exclusiva da sua esposa, a tia Lina. A esta, cabia-lhe ainda cuidar dos filhos (2), Manuel Augusto, Camilo, José e Adão.

A localização do galinheiro.

Naquele tempo, pelos caminhos das aldeias deambulavam muitas galinhas – vigiadas pelos altaneiros galos – que passavam o tempo a depenicar aqui e acolá e a esgaravatar o chão em busca de bicharada.

Por vezes, punham os ovos por ali, sobretudo onde houvesse ervas secas altas e alguns arbustos, para tristeza das donas e gáudio da garotada.

Engraçado era ver os pintos atrás das mães, também a depenicar e a encherem o papo com a bicheza e até pequenos vidros.

À noite, recolhiam às capoeiras, que raposas era coisa que não faltava por aquelas bandas. Viadal não fugia à regra.

Sabedor destes desmandos dos galináceos, não terá sido por acaso que o tio Matos foi erigir, cerca de 1960, o seu galinheiro fora da aldeia, na ribeira, abaixo da Bouça do Outeiro, ali onde o caminho faz uma curva, na Cavada Velha, mais ou menos a meio do trajeto que levava ao rio Caima no Pisão. Tinha então na sua residência uma chocadeira, para a reprodução dos pintos.

A estrutura em tabuado, mas com telhado, tinha uma parte para os franguitos e outra mais ampla onde estavam as poedeiras, que eram alimentadas com regularidade.

Havia, porém, alturas em que o dono ou os seus familiares abriam as portas e as aves vinham depenicar cá para fora, tal como as suas congéneres do lugar.

Só que, mantendo a tradição, as galinhas não conheciam as regras e descuidavam-se pondo os ovos por ali, incluindo nas cavadas (3) dos vizinhos, que fronteiras não era com elas.

Como o sítio era ermo, à noite e mesmo de dia, as manhosas raposas não despegavam dali e, de quando em vez, lá ficava o proprietário sem mais uma ou duas.

Apesar de todos estes dissabores, o tio Matos lá ia ganhando para as despesas, com a venda dos ovos na feira da Gândara e a outros clientes fixos.

Assim foi durante alguns anos, até que abandonado o galinheiro para ali ficou, sozinho, no meio dos eucaliptos que foram crescendo em seu redor, como é visível nas fotos ilustrativas, datadas de 2005.

A “estória” do “desvio” dos ovos.

Como referido, quem tinha propriedades por perto se encontrava os ovos, nomeadamente a rapaziada, escusado será dizer que os traziam para casa, senão mesmo os bebiam por lá, fazendo-lhes um buraquinho de cada lado, prática muito corrente então.

Conhecedor destas peripécias, por as ter ouvido contar, um neto do tio António Matos, o Marco, em cavaqueira recente com este escriba, que lhe deu conta da existência das fotos, perguntou:

“- O tio Manel também roubava os ovos ao meu avô? 

Não era preciso, Marco. As galinhas é que eram finas – espertas – e me conheciam e aos outros vizinhos”, respondi.

Obtendo uma risada do Marco, continuei dizendo:
– “Talvez não saibas, mas a cavada ao lado do galinheiro era do meu avô paterno.

Logo, se lá apareciam os ovos havia que dar-lhes destino apropriado, está bom de ver. Olha que o teu pai, garanto eu, também fazia sociedade nas tainadas – patuscadas – em casa do tio Aristides, que bem conheceste. Deixa lá, vou compensar-te, mostrando-te as fotografias”.

Como o prometido é devido, aqui se deixam as fotos do primeiro galinheiro, com fins comerciais, que existiu na Serra da Freita, estou em crer.

SERAFIM SANTOS DE FUNÇÃO, OUTRO EMPREENDEDOR.

Já que o Marco gosta de saber coisas dos tempos passados do lugar de Viadal, aqui se dá nota de mais um empreendimento que existiu, pela mesma altura, ali muito perto do galinheiro, no sítio do Moinho de Carvalheda e que julgo pouco conhecido.

Tem, mais uma vez, como personagem central um agricultor, comerciante e madeireiro chamado Serafim Fernandes dos Santos, meu tio materno.

Nascido em Vilar, mas casado e residente (4) em Função, à beira da estrada principal e da que leva ao santuário de Nossa Senhora do Desterro, também se dedicava à compra e venda de madeira.

Acontece que, naquela altura, a estrada em Cepelos só chegava a Gatão e em Roge findava junto à sua venda em Função.

Tendo adquirido madeira na margem esquerda do rio Caima, ou seja, na ribeira de Viadal, teve uma ideia genial e que pôs em prática.

Amarrado num penedo, existente na cavada do tio Américo, um pouco à frente da presa dos Toretes e abaixo da quelha do Moinho de Carvalheda, fixou um cabo em aço que transpôs para a margem direita, fixando-o, sensivelmente à mesma altura, lá em cima, junto às leiras.

Transportados os toros por carros de bois ou ao ombro, pelos homens contratados, eram depositados, junto ao embarcadouro, chamo-lhe assim.

Amarrados com duas ou três cordas espaçadas, eram pendurados numas outras tantas roldanas presas ao cabo e empurrados sobre o Caima.

Era fácil esta primeira fase, já que até à curvatura do cabo a carga ia embalada. Mais ou menos a meio do trajeto parava e ficava para ali a baloiçar.

Pouco depois, os trabalhadores, que estavam da outra banda, acionavam um maquinismo que enrolava uma corda presa à carga e, a custo, a madeira lá chegava ao lado de Função.

Esteve algum tempo em atividade esta modalidade engenhosa de transporte de madeira entre um lado e outro das escarpas do Caima, só que um belo dia chegou a triste notícia.

O cabo tinha-se partido ou mesmo sido cortado, como se ouvia dizer à boca pequena, mas de que desconheço as conclusões.

Do lado de Viadal, talvez ainda por lá esteja o pedregulho com as marcas da fixação. Situava-se muito próximo da parede da cavada que foi do tio Fernandes, meu pai.

Novembro de 2022.

Tio Manel

ANOTAÇÕES

– Situava-se na estrada para Gatão, frente à escola, visível na fotografia da feira dos 16, datada, parece, de 1968. Era a terceira a contar de cima. A título de comparação, publica-se uma foto, do mesmo local, datada de 5 de Agosto de 2001. Trata-se da procissão em honra de Nossa Senhora das Neves. Foi dia de comunhão solene.

 – O Manuel Augusto, que foi madeireiro, e o Camilo já são falecidos. A ascendência materna de António Fernandes de Matos consta, muito resumidamente, nos anexos à Monografia de Viadal, texto dactilografado, da minha autoria, Genealogia dos Fernandes. Era irmão de Manuel e do saudoso Sr Adão Tavares, agricultor, cantador e poeta popular, que viveu em Carvalhal do Chão.

 – Courelas de pastagem de gado e obtenção de lenha, delimitadas por parede/muro de fácil transposição.

– A casa em granito ainda lá está. Aqui viveram os seus filhos, nomeadamente o saudoso António, que também se dedicou à compra e venda de madeira, entre outras atividades. A ascendência de Serafim dos Santos pode ser consultada num trabalho, por mim redigido, intitulado O Tabelião da Serra.

FOTOS

– Galinheiro, Feira dos 16 em Cepelos, Procissão na Pontinha, bem como do Marco e tio Manel.

Um galinheiro em Viadal, cerca de 1960
Galinheiro em Viadal, na Cavada Velha
Um galinheiro em Viadal, cerca de 1960
Galinheiro, visto de outro ângulo
Um galinheiro em Viadal, cerca de 1960
Galinheiro, mais uma foto. Ano de 2005.
Um galinheiro em Viadal, cerca de 1960
Bouça do Outeiro. Ano de 2005.
Um galinheiro em Viadal, cerca de 1960
Feira dos 16 na Pontinha, Cepelos. Cerca de 1968.
Um galinheiro em Viadal, cerca de 1960
Procissão na Pontinha. Ano de 2001.
Um galinheiro em Viadal, cerca de 1960
Marco e tio Manel em dia de confraternização. Ano de 2022.