2 – Partida para o Brasil

Estação 2 – Partida para o Brasil

Localização: Rua Ferreira de Castro, n.º 1620
Local de implantação: Quinta Ferreira de Castro. Zona, identificada, onde existiram os currais.
Coordenadas GPS: 40°50’13.28″N 8°25’42.09″W
Distância total: 0,01 Km (pedestre) / 0 Km (automóvel)

Partida para o Brasil

«Todos sonhavam com o ouro do Brasil, que constituía ali a suprema fascinação. Eu era ainda mui pequeno e já minha avó me dizia:

— Tu hás-de ir ao Brasil e trazer de lá um grande saco com libras. Não é verdade?

— Sim, avozinha; eu hei-de trazer um grande saco com libras.

O Brasil era a liberdade, a fuga à tutela familiar — e o mistério… Mas era, sobretudo, o gesto másculo, o gesto do homem que eu queria ser aos olhos de Margarida.
[…]
Começaram os preparativos. Minha mãe hesitava em deixar-me partir, mas a minha resolução era firme.

Toda a gente se admirava do meu arrojo: “Tão novinho e já querer ir para o Brasil! A senhora Mariquinhas vai ver que ainda vem a ser rica por via dele. Vai ver! Vai ver! Ele é muito inteligente… Tomara eu que o meu quisesse ir!”

Minha mãe suspirava fundo, soltava alguns ais e eu ficava muito lisonjeado. Com o meu gesto, antecipava a idade e começava a viver o homem que eu desejava ser.

Só um homem iria para tão longe e Margarida, decerto, atentaria nisso. Ah, sem ela eu não teria partido! Não teria tido coragem.

Morreu sem o saber, talvez, mas foi ela, foi o desejo de que não me julgasse criança, foi esse meu primeiro amor, pulcro e ingénuo, que me deram forças para afrontar o monstro fabuloso que me parecia, então, o Brasil. […]

Comecei a acordar muito cedo. O sofrimento que me dava a perspectiva de partir não me permitia dormir de manhã. E, então, eu entretinha-me a imaginar o que Margarida pensaria de mim, o que ficaria pensando quando eu partisse. Quando eu partisse!»[1]

«Tivemos, nesses dias, notícias do sr. Samuel, que me levaria em Janeiro. Veio o Natal, as primeiras lágrimas e as sufocações. Minha mãe chorava pelos cantos e eu chorava também, ocultamente. A nossa casa parecia estar de luto pela morte recente de alguém.
[…]

É a última consoada que passamos juntos, meu filho; não torno a ver-te! — disse-me minha mãe naquela noite de Natal.


Tinha-se já marcado o dia da partida. Seria a 6 de Janeiro. Eu agora gostava muito de minha mãe. Toda a aldeia me parecia mais linda e à minha tristeza consorciava-se a vaidade da minha coragem.


No dia 6 levantei-me cedo. Levantamo-nos todos muito cedo. Meu tio Serafim, que devia acompanhar-me à vila, chegou pouco depois.
[…]
Para a minha despedida preparara-se um almoço excepcional e minha mãe cirandava na cozinha, dando ais e soluçando.
[…]
Não me recordo como foram transportados para a vila o meu grande baú forrado de coiro e o meu pequeno baú de folha. Creio que foram à frente, à cabeça duma mulher. Não sei.


A despedida é que eu nunca mais esqueci. Foi em cima, no primeiro andar, na cozinha.

Minha mãe agarrou-se a mim, em altos gritos. Eu chorava também. Em volta, várias bocas pronunciavam o meu nome, carinhosamente: “O Zequinha… O Zequinha… O Zequinha…”

Desprendemo-nos. Limpei as lágrimas e desci. Minha mãe veio para a janela. Também lá estavam as cabeças pequenitas dos meus irmãos. […]
Comecei a andar, lentamente, ao lado do meu tio. Os gritos de minha mãe faziam-me voltar a cabeça, de momento a momento. Alcançamos, assim, a curva da estrada. Lá, não pude resistir mais e as lágrimas vieram de novo, ardentes, inesgotáveis.


Minha mãe, braços longos, desesperados, acenava-me. Eu agitei, então, um lenço branco. Uma, duas, muitas vezes. Agitei-o até desaparecer na curva do caminho. Minha mãe lá ficou, mas eu acabava de revelar para sempre a fotografia daquela cena na câmara-escura da minha dor.» [2]

2 – Partida para o Brasil
 [1] Ferreira de Castro, «Memórias inéditas», Jaime Brasil, Ferreira de Castro e a Sua Obra, Livraria Civilização, Porto, 1931, pp. 17-18.