AntiDeuteronómio II


No tempo em que as sardinheiras das varandas dos pobres
faziam parte dos nossos sonhos florindo em poemas de sol
e de cor no tempo em que as andorinhas teciam grinaldas
de vida nos beirais no tempo em que os rios bordavam a
terra de areia branca no tempo em que a brisa sussurrava
por entre as flores e as fontes murmuravam seus amores
a aurora da nossa inquietação tinha o cheiro a maçãs e o
pulsar das coisa vivas e o levíssimo sorriso dos jardins do
paraíso tudo amávamos em nobre sentimento de exaltação
O mundo era transparente e fácil de amar e cheirava a feno
a razão ondulava a frágil seara um suave alento na quietude
universal da liberdade como harmoniosa mulher suspirando
ao vento
Tão inocente amor tanta alegria quem pensaria que os rios
de pranto haveriam de chegar um dia em negra nuvem de
calado voo
Não podemos deixar que a nuvem negra se abata sobre nós
e o pensamento… e o pensamento nos agarre o desértico
silêncio sentados ao vento no falso sol da varanda da ilusão e
da erosão da consciência adormecida
Não podemos deixar que a todos nos transforme em filhos
da morte filhos de nenhum lugar e de toda a parte figuras
do vale das sombras esgueirando-se nas sombras de outras
sombras sonâmbulos fantasmas sem gestos de vida que nos
façam acordar
E quando for dia de sol bem alto porque haverá sempre um
dia a rasgar a deuteronómica nuvem negra que ameaça
os campos do futuro e o sereno assombro das pedras e os
peixes verdes dos poemas e os rubros sorrisos que cheiram
a mar e os passos dos que aprendem a andar e os rios que
correm nos olhos de uma criança e a memória sem tempo e
a terra sem chão mapeada de esperança e os desejos que nos
abraçam e o amor excelso e fecundo não mais a noite dos
homens apagará as estrelas do céu com todas as bombas do
mundo