Ascetas e serandeiros
Comum a mais ou menos todo o território português, o serandeiro era, e é ainda hoje, na sua versão folclorizada, um personagem misterioso que surge à noite, ao serão,durante as actividades agrícolas comunitárias, escondido pelo manto e pelo silêncio com que se envolve, deixando-se apenas enunciar pelo ramo de cheiro que segura e com o qual acaricia as faces das raparigas solteiras.
Envolto pelo mistério, num compromisso entre o medo e a sedução, o serandeiro é também a encarnação de um mito: um personagem que emana do nada, que não se deixa descobrir, que se esconde num atrevimento que apenas a noite autoriza e que, também por isso, se torna imaculado.
Imaculadas são também as raparigas que se juntam nestas actividades nocturnas, vigiadas pelos homens mais velhos e pelas mulheres-mães, enquanto ouvem e repetem um repertório musical desempenhado em grupo, com o qual aprendem a comunicar, a dialogar e a partilhar uma linguagem comum.
A música que cantam, tal como o serandeiro, não se sabe de onde vem.
Aparece do nada, no meio da noite, no meio do tempo.
Pertence simultaneamente a todos e a ninguém, e por isso a tradição diz que é «pura», também ela imaculada, representante do ascetismo de um povo que mais não é do que a encarnação quase sagrada do passado, a partir do qual o presente se constrói.
Nas versões folclorizadas, esta música e os comportamentos a ela associados, rompem com o presente e definem a representação nostálgica do passado inevitavelmente «melhor» porque mais «puro».
Para Lopes-Graça, e para a sua geração, ela congrega o que o «povo» tem de mais sagrado: a sua alma.