Foi a noite mais triste a mais negra noite mais triste do que todas as sombras mais triste do que a noite de Orfeu mais triste do que a sombra dos coqueiros sem lua mais negra do que o mergulho do tarrafe nas águas fundas do Cacheu.
O homem honesto vítima de esconso agravo sozinho na noite sem força sem amor sem atitudes enrolou-se na torrente de lágrimas e não dormiu as longas horas dessa noite tudo se tinha rasgado o sol a lua a paisagem os rios os braços e o sonho em tiras de trapos que à toa foi enfiando nos sacos de lixo sozinho na noite sem que uma espada refulgisse em suas mãos impondo a fronte e a palavra no renascer do horizonte.
O nevoeiro inesperado entrou pela frincha da janela e comeu tudo comeu a casa que caiu comeu os olhos que deixaram de ver comeu as mãos tensas que deixaram de tocar a casa ruiu não ficou pedra sobre pedra e no fim nem pedras se viam no chão nem terra nem pó tudo limpo impecavelmente limpo feito em nada num lençol apenas mordido de pétalas e sedução.
E o nada entrou na alma como nevoeiro cerrado e o coração deixou de bater preso na argila agarrada às veias apenas um fio de luz de prata fria incandescente atravessava o sítio onde devia estar a mente e as ideias gerando um lamento seco como um gemido fremente não há remédio para o gemido o gemido é a coisa mais só mais terrível mais cortante da carne viva latido de cão perdido no monte não dorme ante o silêncio de mil ouvidos moucos e agarra-se ao sangue como crude apenas o dissolve a lama da noite jorrando fontes de silêncio sobre um corpo sem beijos de bocas atadas e olhos sem horizonte.
A noite do desespero despenhou-se sobre a cidade cuspindo nomes falsos fincou as garras nas janelas rasgou em feridas extensas o corpo nu da solidão queimou a vida em catedrais de cinzas abriu com estrondo a porta de saída sem porta de entrada a janela era só uma frincha desmesurada tudo era dentro e tudo era fora sem nada… nada havia pelo meio só livros a voar sem paredes nem estantes de permeio.
Tudo soava a violino sem cordas num ritmo de movimento sem cor sobre um tabuleiro sem pedras sem força nem entre actos numa franca abertura da porta que desce aos infernos chorando a virtude em forte clamor à beira da morte que sobe no sangue glosando a pobreza de mil retratos impressos noutra era em letra de amor atirados ao fundo abismo de uma profunda cratera.
Havia em tempos cobertores ainda que dobrados em opróbrios jugulares havia um cobertor alheio como lívido veneno dentro de casa mas não há casa nem cobertor que aqueça por dentro o frio é mais dentro do que de fora do corpo não há fora nem exterior nem mãos nem cara apenas dor e um mar de nada gelado sem brilho e sem cor enganando a amargura de uma fogueira sem calor.
O nevoeiro traiçoeiro penetrou de mansinho sorrateiro enleou-se no orvalho gelado e num abraço apertado dançaram os dois até se esfumarem e entrarem pelos olhos cegos e pela respiração já frouxa prestes a apagar-se no chão sem pedras desenhado no pó que se havia sumido num tempo esquecido na imobilidade das promessas e no correr das águas em qualquer sentido.
Gritou o homem sem voz pela mãe que havia morrido como gritam os filhos pelas mães e as mães pelos filhos vivos que não ouvem nos momentos de aflição mas não havia mães nem filhos nem momentos de aflição eram apenas restos de uma ilusão espalhados pelo chão que não era chão mas uma angustiante perda de forças para gritar se gritar fosse água no incêndio da solidão.
O tempo era de morte seria assim a morte pior não seria se houvesse uma porta de entrada para onde para o nada e não de saída para onde para a vida se vida houvesse para o frio da rua se rua houvesse para a fímbria do mar se o mar tivesse fundo onde o silêncio grita e explode numa girândola de palavras e gestos de outrora perdidos entre nuvens que choveram relâmpagos entontecidos.
A memória era um vidro estilhaçado vermelho de sangue quebrado um pedaço de vidro partido que o nada deixou esquecido entre os dedos sangrantes do homem que caminhava por dentro do nevoeiro quando homem inteiro nada sendo agora desde que em nada se desfez a casa e dela tomou conta o nevoeiro.
Ainda havia lágrimas havia restos de sonhos pedaços de vida espalhados pelo chão que agora estava impecavelmente limpo depois da entrada do nada e da inundação do nevoeiro como se nada ali tivesse caído ou fosse lambido pelo orvalho que entrou pela frincha da janela agora em buracos que davam para a rua esburacada onde a violência silenciada pelo vinho azedo havia deixado todas as coisas na sombra do barro da terra apagando milhões de estrelas demasiado cedo.
No ar se ar havia voava um texto de mil palavras sem língua uma nicotínica melodia de álcool e soníferos na frágil clareza de um cérebro brumoso se cérebro havia trancado de sofrimento entre a perda e a morte gargalhando a fraqueza para tentar encher o último momento se momento era aquele onde cabia a tristeza e o sofrimento de uma aurora escondida onde os astros quebraram a luz que dá luz à cidade e as pálpebras se incendiaram com os olhos de fora.
Altas horas da noite por entre castanheiros podres e montes de estevas sem cheiro precipícios e falésias suicidas lânguidos cantares da planície seca secaram as lágrimas fugiram as sombras dos olhos baços do pensamento inteiro e uma luz de prata sensual escorreu de alto a baixo quase conclusiva persuasiva desejosamente metafísica mas de cálculo tão frio que a força das lágrimas quentes avançou no sono precipitado por entre abismos para as águas do mar.
Do fundo dessa longa noite gritam as mãos erguidas novos olhos doces de chorar e negar o velho altar do homem empoleirado grosseiro brutal avarento derradeiro a condição de ser inteiramente outro com sabor a mel a terra e a resina nem eterno nem intacto nem primeiro sem medo de caminhar por dentro do nevoeiro sem medo nem angústia de se perder devorado pelo orvalho de pedra de qualquer noite mais triste que possa tombar sobre o leito de morte de um homem inteiro.