por Aventino Monteiro
Maio está no fim. As pontas da erva para semente foram cortadas e separadas, a restante, cortada a foucinhão, espalhada e deixada a secar durante algum tempo, (periodicamente virada com a forquilha ou uma galha de madeira, para uma secagem uniforme) por fim, depois de seca, transformada em restolho.
Quando o ciclo ficou completo, a erva foi empilhada em meda, mesmo ao lado da ponte de Vigues, encostada ao tanque do sulfato. A nova meda é erguida com esforço, calcada à volta de um mastro, a finalizar a mesma, um plástico amarrado ao pau, evitando assim que a água da chuva se infiltre e apodreça a palha, por cima do plástico e a finalizar, um velho arco de pipa, que não permite que o mesmo seja arrastado pelas intempéries.
À volta do “arredol” o cadabulho está feito e o estrume espalhado.
É tempo do Tio Augusto preparar a terra, para mais uma sementeira.
Há no ar um cheiro a terra molhada, estrume e Primavera.
São sete e meia da manhã, as sirenes do Martins & Rebelo e da Lacto Lusa, chamam pelos “seus”, para mais um dia de labuta.
Desde as seis horas da manhã, que se observa movimento no lameiro.
O Ti Augusto e os animais movem-se silenciosamente e em uníssono.
Em passo lento, mas decidido, os bois (com o açaime) puxam pela charrua. A lâmina cava sulcos profundos, deixando a descoberto a terra prenhe de fecundidade.
As últimas cheias deixaram para trás um rasto de húmus e nutrientes.
Agarrado aos varais da charrua, o Tio Augusto, por vezes, “puxa” pelos animais.
– Aaaanda branco, anda bromelho! – – Ah, “marabelhos”!
Com este comportamento, evita o uso da aguilhada.
O sol de finais Maio é criador, fazendo adivinhar um Verão antecipado e produtivo.
Rosto curtido pelos anos e pelo trabalho, mais pelo trabalho que pelos anos, na face, a barba de muitos dias, disfarça rugas precoces, sinal de quem aparenta mais idade, do que aquela que realmente tem.
Na cabeça um gasto chapéu, (companheiro de muitas festas e romarias) a cor original há muito desapareceu, calças de cotim (às riscas) compradas na feira da Gandra, camisa sem gola (de riscado), nos pés, as inevitáveis chancas ferradas e chapeadas.
Por cima da camisa, um desgastado colete, vestimenta de muitas lides e do qual raramente se separa. Num dos bolsos a onça de tabaco, no outro as mortalhas. Braço apoiado na aguilhada, calmamente retira uma mortalha, seguidamente, e com a perícia de quem está habituado ao ritual, pega na onça e tira um pouco de tabaco, deposita-o na mortalha, enrola-o um pouco e, de seguida, leva-o aos lábios, duas lambidelas com a língua, rola-o entre os polegares e os indicadores para a “cola” fazer efeito, está pronto o desejado cigarro.
Vai à algibeira das calças e saca da caixa de lumes, risca um e acende o dito, dá duas puxas profundas, respira fundo e olha para os animais que estão perto do fim da leiva.
Calmamente deixa o fumo sair pelas narinas. No pescoço, o vermelho lenço tabaqueiro, usado para outros fins que não aquele a que se destina,
A sua voz de comando, leva os animais a fazer o que pretende.
A cada leiva, imediatamente as aves aparecem para reivindicarem o seu quinhão, uma apetitosa minhoca, um ou outro insecto e alguns lagartos.
Sob a terra revolta, uma pega saltita. No bico um troféu (gorda minhoca).
A seu lado, e reclamando a sua parte na boda, há arvéolas, melros, gaios, pardais, cucos, pintarroxos, pombas, rolas bravas, carriças, papos amarelos, pintassilgos e toutinegras.
Todos beneficiam da mesa farta, que a Natureza lhes preparou sem custos.
A água, vinda do ”Açude dos Ciganos”, (onde se situa a ponte de acesso ao Pavilhão Municipal, tantas saudades!) passa por um aqueduto sob a estrada, junto à casa da Tia Idalina do Moreira, corre límpida, abundante e transparente. Lá mais para o Verão, trará vida aos campos por onde passa.
Na borda da levada brotam as azedas, em tenros e suculentos rebentos, (grelos comidos às mãos cheias pela garotada) que sabe onde encontrar os mais apetitosos.
Os morangos silvestres começam a mostra-se. Os musgos, que em Junho servirão para atapetar as cascatas, vestem-se de verde-escuro.
As violetas selvagens (sem cheiro) e as “campainhas” aparecem em profusão, um pouco por todo o lado.
Nota-se em todos os seres, uma força que renasce, e todos os anos se renova. O homem e a terra, os animais e a perpetuação das espécies, todos irmanados na mesma vontade de mudança e renovação.
Uma carriça voa veloz, leva a direcção do muro do campo de cima. Aí, e por baixo dum carrasqueiro, encontra-se o seu minúsculo ninho, todo ele, um prodígio de conforto e engenho, camuflado o suficiente, para confundir os predadores.
Um melro levanta voo. No bico amarelo, um bocado de restolho, sinal que o “apartamento” ainda anda em obras.
O cuco, esse aproveitador de casa alheia, não necessita de fazer nada, limita-se a encher o papo e esperar, sabendo que os outros lhe alimentarão a cria.
A poupa levanta a crista, observando tudo em redor com perspicácia, procurando no estrume, material com que irá terminar a “casa” onde as crias se desenvolverão.
Nas margens do Vigues, despontam os primeiros lírios amarelos (espadanas), contribuindo para embelezar ainda mais o ambiente em redor. Nos amieiros e salgueiros, as tenras folhas dançam, embaladas pela morna brisa.
Nos lameiros vizinhos, há um clima de festa no ar, as flores brancas das couves-galegas e as amarelas dos nabos, enchem de cor e alegria toda a terra. É a Natureza vestindo-se com a sua melhor roupagem.
De muito longe, chegaram as primeiras andorinhas. Um pouco por todo o lado, dançam borboletas. No ar zumbem as abelhas e outros insectos.
Indiferente a tudo isto, (ou talvez não, quem sabe?) o Tio Augusto continua com a “laboeira”. Os animais, no seu passo lento, vão e vêm, um cenário rústico, que nos chega dos confins dos tempos, a comunhão perfeita entre o homem e os animais, todos dependem de todos.
No final da leiva, cuidado, para não bater no esteio. Roda-se a charrua e continua-se.
Coelhosa 25 de Abril de 2014
Aventino Monteiro
(Latoeiro Fazedor de latas)