Um bramido de raiva


Senti um frio arrepiante e um buraco negro nas entranhas
tão fundo como a silhueta daquele maldito comboio da
inglória velocidade rebentando a dor direito à morte que está
em pé na berma do cais pela mão de uma criança
O pai nos braços de um escombro deste mundo sem sol
nem lua destino bárbaro e cruel da perda total de mão dada
com o filho contra a majestade de um gélido cadafalso de
ferro parido pela força de um desumano progresso contra o
qual se esmagam os pobres e desamparados que vivem em
contramão
Meu menino sonâmbulo de olhos negros e pálida doçura
quase luminosa firme terna inocente confiante na verdade
desfeita em sangue pela mentira das mãos fatalistas de uma
sociedade podre
Podia ser um menino nascido no berço do lado ao colo de um
pai ou de um avô milionário desiludido porque a sua fortuna
não havia atingido o limiar do absurdo o que não deixava de
ser triste mas a vida filha da puta meu menino pobre nada
mais te deu do que um pai sem nada sem prendas sem força
nem entreactos que te enxergassem melhor sorte do que a
morte
O monstruoso comboio entra na tua boca a toda a brida o
ar louco sai em turbilhão do teu pequenino peito sem eco a
vida estilhaça-se em ruidoso estrondo e o teu corpo frágil
cai em pedaços sobre os bonecos das tuas meias no pavoroso
silêncio dos teus olhitos redondos
E o mundo continua como se nada tivesse acontecido
Quando vi que eras tu o menino que estava no curto
caminho da morte pela mão de um pai que não dominava
a fome e não tinha dinheiro para te comprar uma bola um
pai que não sorria nem cantava para ti porque a alma se
perdeu na praça do medo com o sol congelado na boca senti
um bramido de raiva e uma louca vontade de pedir contas a
Deus