O Açude do Banco

O Açude do Banco
O Açude do Banco não é apenas um nome. É um local que marcou gerações de adolescentes, adultos e crianças.

Nos meados de Maio, se o calor o permitia, tinha início a nossa época balnear.

Era nos meses de verão que o açude adquiria vida própria. Foi aí que alguns de nós, a maioria, aprendemos a nadar e tomamos banho (em muitas situações o primeiro banho integral do ano).

Nos espaços envolventes, famílias faziam piqueniques, ou simplesmente divertiram-se, e diziam, com propriedade, que o Açude do Banco era a praia dos pobres.

Para aqueles que, como eu, já passaram os sessenta, certamente recordar-se-ão, de um ou mais episódios passados naquele local, ou nos espaços em volta.

Foi num dia de julho, no alvor do dia. Adivinhava-se mais um dia de canícula.

A manhã foi preenchida a dobrar umas centenas (senão milhares) de rótulos, para o Martins e Rebelo, pagos a três escudos e vinte centavos, por cada maço de mil. Nunca esqueci esta quantia de tanto ouvir falar nela.

Juntava-se a promessa de uma tarde de folga – para ir para o rio, claro está – se a tarefa fosse concluída.

Os dedos tinham magia e, com a ajuda dos meu colegas, os “papéis” voaram do monte em rapidez record. Tarefa concluída com sucesso!

Depois, era mastigar o jantar à pressa, (carapau frito vendido pela tia Maria do Aú..) e só pensar numa coisa: correr para o Açude do Banco.

As mães, sempre umas “chatas”, tinham a difícil tarefa, de contrariar a euforia, e acalmar os ânimos.

Vinha logo, logo, o responso da ordem: ninguém ia para o rio, antes de passarem duas horas!

Tempo que nenhum de nós cumpria, já se vê. Elas viravam costas e ala, que o Banco espera por nós.

Nesses tempos de antanho, em que os dias pareciam não ter fim, aquele sítio era o ponto de encontro, para um enorme número de crianças e adolescentes.

O Caima exercia um fascínio, em todos nós, difícil de descrever.

Em calções, cuecas ou nus, era naquelas águas que as tardes de verão eram passadas, entre pontapés na bola e uma ou outra ida às ramadas circundantes, que o tempo escorria lânguido e lentamente.

Ao fim da tarde, e depois de mais um dia de trabalho, começavam a chegar alguns adultos, principalmente, para um banho retemperador.

Neste dia, mais uma vez, cumpria-se a tradição: um grupo de crianças de Coelhosa combinaram ir nadar e brincar para o rio.

O local escolhido só podia ser um, o Açude do Banco que se situa em Entrepontes, nas margens do Rio Caima, junto ao desactivado alambique do Ti Augusto «Janeiro».

Quando iniciamos a demanda, o calor era tanto, que o alcatrão da estrada, semiderretido, cedia sob o nosso peso, a maioria descalços.

A solução era ir pela berma, encostados aos muros, onde o piso era em paralelepípedos.

O calor inclemente não dava tréguas, mas não chegava para nos demover da ida para o Banco.

Juntos e irmanados no mesmo sentimento, rindo, correndo e brincando, fazíamos enorme algazarra.

O Tino, Manel «Mascato», Zé «Minhoto», Tavares dos «Casais», Abílio «Putinha», Amadeu «Caçoilo», Fernando «Mascato ou Aranha», Tono Moreira ou «Tono gru», o Tono da Zézinha ou «Pinhata» e ainda o Fernando do «Café», e alguns mais novos entre os quais, o Artur Leite ou «Tanam», o Tono «Zefa» o Augusto «Agulha» e o Betinho seus irmãos, todos filhos da Beatriz da «Mascata».

Ao chegar à quinta do Ti Adriano do “Gaz”, descemos pelo caminho em direcção às «Remolhas». Já se avista o açude e o fim do suplício. Aí chegados, atravessávamos o Açude do Vigues e estávamos no largo do «Banco».

Despíamos a pouca roupa que levávamos. Para muitos, uns calções de ganga com alças (remendados) e uma camisa coçada, comprada no “barateiro”, e estávamos prontos para uma tarde de água.

Mergulhos e brincadeira. Como por artes mágicas, alguém – não se sabe como – desencantava uma velha bola remendada, cosida com pontos grosseiros, que a agulha e as linhas da mãe é que pagavam a festa.

Os mais novos, sem pudor, e à falta de calções, iam para a água nus; os mais velhitos, com as cuecas encardidas, a substituir os calções.

Preocupações que estavam arredias de todos nós. Havia sempre alguém que surripiava um naco de sabão, para desencardir o corpo e as cuecas.

Depois era brincar, chapinar, saltar do milheiral do campo da Casa de Areias ou, para os mais afoitos, aqueles que tiveram a coragem para fazer a travessia do Banco, mergulhar da eira do tio Augusto Janeiro.

Tempos de brincadeiras intermináveis, mergulhos e entradas e saídas do rio, ou então, no espaço que havia entre o Caima e o Vigues.

Quatro pedras como baliza e passávamos tardes inteiras a jogar à bola.

Para os mais afortunados, um pulo ao tasco do Tapô, na volta, traziam os bolsos a abarrotar de jogadores.

O mesmo local era frequentado por pessoas de Lordelo, Gandarinhas, Portela, Vila-Chã, Gandra, Macinhata, Burgães, Areias, Barbeito, Baralhas, Cabril, Rabaceira, Codal, Ramilos e algumas vezes até de Macieira.

No final do dia, fazíamos o caminho inverso, regressando cansados, mas felizes.

Ao passar pelos campos, poucos de nós resistiam a um cacho de uvas, para enganar a fome, mesmo que o pintor ainda viesse longe.

Ao passar pela quinta do ti Adriano do Pinho, eram as maçãs «malápias» (duras como ferro) que nós desviávamos.

Um ou dois, levantava a rede – o mais desenvolto, quase sempre o “Zé Mamas” – passava por baixo para a apanha e, com alguma sorte, alguns, poucos morangos, do Porto, como teimosamente, lhe chamávamos.

As maçãs, muito duras, faziam a boca amarela.

Havia em todos nós uma certeza: no final da tarde voltaríamos para casa onde, na mesa da cozinha, a malga do caldo, ou ainda, uma enorme bacia com salada de tomates suculentos, pepinos enormes e alface aos molhos, nos esperava.

Eram cultivados no Curtinhal, uma pequena leira, junto à casa da tia Rosa do «Caçoilo», onde o «Pai-Velho» (o meu querido pai) com saber, dedicação e mestria, e com a ajuda do «Seringador»(*), retirava da terra.

No centro da mesa, a travessa com os carapaus de escabeche, que restaram do meio-dia.

Estava ali, estrategicamente colocada, no raio de acção de todos.

Como a fome apertava, ela era a mais solicitada. As cabeças, os meios e os rabos, a escorrer azeite e cebola, desapareciam, num ápice. E sabiam que nem “ginjas”!

Recordo o carinho com que a minha mãe fazia, e temperava, estes manjares que o sabor, e o tempo, não apagam.

O Açude do Banco

(*) Seringador ou Borda d’Água (ainda hoje vendido) – Publicação anual com informação sobre o cultivo da terra e a importância das fases da Lua na agricultura. Anuário que os agricultores consultavam e levavam a sério.

Em memória de meu pai.

Coelhosa 20 de julho de 2009

Aventino Monteiro (Latoeiro, Fazedor de Latas)