O último livro de EVA CRUZ, uma bela prenda do seu aniversário, está pronto. Cerca de trezentas páginas da mais bonita e difícil arte de escrever, a da simplicidade. Sobre ela e o livro escrevi estas singelas palavras:
Entre a raiz e o fruto
A raiz prendeu-a à terra no Dia de Reis de 1942. Tinha na cabecita uma touca branca e estava deitada ao lado de minha mãe, sob os olhos curiosos e inseguros dos meus quatro anos. Esta, a primeira imagem da Eva que a minha memória guardou intacta até aos dias de hoje.
A raiz rompeu a terra, nas faldas de uma serra dourada de sóis, verde, negra de breu e prateada de luas altas, entre vibrações de criança, conversas de brinquedos e saltinhos de pardal. Em breve se fez jovem arbusto, com todos os pássaros chilreando à sua volta ao romper da aurora, num bailado sedutor, convidando-a a voar. E ela sonhou…
E voltou a sonhar…
Abriu cautelosamente as asas, voou acima das árvores, viu o sol de muito perto e aprendeu o mundo. De menina se fez jovem, de jovem se fez mulher, de mulher se fez mãe e avó, professora de gerações, cuidadora de anciãos e exemplo de cidadã do mundo, de um mundo onde gostaríamos de viver.
Já árvore robusta, carregada de frutos, assentou o voo, aguardou da vida o amainar do vento e o serenar das ondas, para acolher e alimentar as aves que nela fizeram ninho.
Assentou o voo e recolheu as asas.
Mas voltou a sonhar…
Voou desta vez pelos céus da escrita através das páginas dos seus livros ao encontro da idade que se estreou no abraço das árvores e no murmúrio dos rios, da idade em que se vestiu de sol e se despiu de luar, da idade cheia de espaços que foram tempos, da idade em que, muito longe dos brinquedos, semeou vida na vida dos outros, da idade em que começou a perceber que a força do carácter era o seu fio de prumo. Um voo suave, rente à terra, por entre as árvores da arte, da beleza e da poesia, levada pela sedosa brisa de tudo o que é simples.
Escrever é uma arte, arte literária. Escrever não é palavrear o papel. Escrever é conseguir que uma página em branco jamais seja papel e se transforme num pedaço de nós, num sentimento, numa força, ainda que frágil, da natureza humana. É lembrar que só dos caminhos da nossa existência nascem os passos que nos podem conduzir à estética da pintura da vida.
Como já disse noutra altura, são de fábula os textos da Eva. Poemas que se dedilham por si sós em sons que se confundem com a água dos regatos. Sinais de um caminhar que foi sempre regresso. Como o sol.
Por isso, este livro da Eva é um livro feito de chão e de céu, de terra e água, de sol e luar, de lágrimas e risos.
Adão Cruz
A apresentadora, Cristina Maria de Sousa Ferreira Marques, natural de S. João da Madeira, é licenciada em Línguas e Literaturas Modernas e mestre em Literatura Portuguesa Moderna e Contemporânea pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Leciona a disciplina de Português e de Literatura Portuguesa na Escola Básica e Secundária Oliveira Júnior e é formadora de professores em áreas como Didática do Português, Literatura e Gramática.
É encenadora de três grupos de teatro, em projetos de continuidade, e dinamizadora de eventos culturais a pretexto de livros e de escritores.
Em 2023, foi finalista do Global Teacher Prize, prémio nacional que distingue professores inspiradores cuja ação ultrapassa as paredes da sala de aula.
Esta nomeação reconhece, no seu entender, décadas de trabalho e motivação para as causas do ensino público e da cultura.
“Entre livros e palcos” é a expressão que melhor a define.