Rosas, Lírios e Crisântemos

Prémio do Conto Canongate Books

por Paulo da Costa

Num fim de tarde arruivado, caminhando pelo olival, Manuel Sabetudo anteviu a sua morte e o corpo estremeceu como uma oliveira varejada, derramando a última azeitona.

Manuel perdeu o dom da palavra, sobrevivendo esse verão fatídico, acocorado na margem do rio Caima, seguindo as águas cristalinas a deambular pelo verdejante vale até desaparecerem de vista.

Manuel Sabetudo revivia o acidente na sua mente, ajoelhando-se ao corpo, fechando-lhe os olhos, seguindo o cortejo até casa onde depositaram o cadáver, depois ajudando-os a despir as roupas rasgadas e a banhar-se, corando, pois era um homem pudico.

No banho, os dedos do Manuel contornavam pisaduras do tamanho de pântanos que lhe cobriam a pele. Acariciava e acariciava, pisaduras profundas da cor de lagos doentes, pisaduras mais brandas, da cor dos céus de verão.

Mais tarde sentou-se em vigília com os aldeões, emocionado pela inundação de flores, os cânticos e as orações aflitas.

Juntou-se ao seu próprio funeral rezando mais alto que todos, mas ninguém se apercebeu.

Sentou-se ao lado do padre durante a missa do sétimo dia e juntou-se aos congregados na comunhão sagrada.

Nesse verão, Manuel Sabetudo cavou a sua sepultura e dormiu na cova para habituar o corpo à moradia final, procurando a posição mais confortável para o derradeiro descanso dos ossos.

Homem de sono atormentado, descansava as costas contemplando as estrelas, mas os ossos queixavam-se, o céu assim tão afastado, para lá do seu alcance.

Depois dum mês de esforços, a dormir agitado, resolveu-se pela barriga, a posição mais vantajosa para presenciar o acerco das minhocas.

Aldeões avistavam Manuel Sabetudo, envolto na neblina matinal, à boca do rio Caima, acocorado sem linha nem anzol, enfeitiçado pela corrente.

Depois do meio-dia, durante a sesta e enquanto todos descansavam, Manuel media os passos, do cruzamento para Oliveira até sua casa, depois, do cemitério à igreja. Uma rotina executada em silêncio zelado.

Especulava-se que o seu estado se devia à antecipação do apocalíptico fim do mundo. Outros suspeitavam que ele tinha encontrado o seu próprio fantasma.

Apesar das especulações ninguém conseguiu extrair-lhe a verdade e ele passeava-se como que invisível ao mundo, já alma doutro mundo.

No dia da morte predestinada, e pela primeira vez desde a sua visão, Manuel Sabetudo banhou-se no Caima e aperaltou-se, fazendo um perfeito penteado de risca ao meio.

Vestiu o fato domingueiro, mesmo sabendo que seria rasgado aos bocados. Encaminhou-se para o mercado, levantando chapéu, agradecendo de antemão as esplendidas rosas, lírios e crisântemos que cada um traria ao seu funeral. Eles lembrar-se-iam dos seus desejos.

Antes de se encaminhar para a morte, Manuel Sabetudo, fez um desvio à casa do coveiro e informou-o dos requisitos especiais, barriga para baixo, sem caixão; parando depois à porta do cura para lhe relembrar as escrituras do livro de Daniel que desejava fossem lidas no funeral.

Quando tinha finalizado as incumbências e as despedidas privadas, a aldeia completa, uma cortejo de centenas, seguia Manuel como uma procissão. Tinham curiosidade.

Como era possível uma pessoa encontrar a morte num dia tão glorioso e soalheiro? Nem um cheiro de vento para tombar uma árvore como a sorte do Cipriano Bispo, anos atrás; nem um cheiro de trovoada para fulminar outra Rossandra Ferreira.

Depois de completar um circulo perfeito em volta das muralhas, Manuel Sabetudo parou. De costas para a multidão, encarava a escuridão oca do portal da muralha da aldeia.

A entrada afunilava o brilho distante do mármore no cemitério. Olhou os céus em busca do presságio. Foi então que de um azul sem nuvens, o primeiro jacto atravessou os céus da aldeia.

Um rosnar mais áspero que trovoada estremeceu o chão, uma apocalíptica linha branca rasgou o céu, convencendo as mentes religiosas de que Manuel tinha previsto o fim do mundo.

Em pânico, o apavorado rebanho de aldeões, fugiu precipitadamente na direcção das muralhas, atropelando tudo que se deparava no caminho.

Na rara ocasião em que essa trovoada regressava e rasgava uma linha apocalíptica sobre o céu assombrado, aldeões deixavam foices, martelos e panelas, apressando-se para a campa de Manuel onde se juntavam em oração, avivando-lhe a sepultura com rosas, lírios e crisântemos.

Acreditavam que Manuel tinha evitado o fim do mundo ao sacrificar a sua vida a Deus. Uma morte santa para que as suas vidas fossem poupadas.

Os aldeões lembravam-se das escrituras do funeral e oravam aos pés da campa, à espera da ressurreição, quando Manuel regressasse para os libertar das suas consciências pesadas.

Manuel Sabetudo acordava na sua morada eterna, comovido às lágrimas pela inundação de flores.

Cheirava cada rosa, lírio e crisântemo e juntava-se ao povo e aos cânticos febris, cantando mais alto que qualquer um, mas ninguém se apercebia.

Os anos passaram-se e os aldeões visitavam-no com menor frequência. Cansado de se levantar da sepultura, Manuel, lentamente, sucumbiu ao sono eterno.

Fonte

Paulo Costa é escritor, viveu a infância em Vale de Cambra e está radicado no Canadá.

Poema na Bienal Internacional de Poesia de Oeiras

https://www.youtube.com/watch?v=bYchvlt0LkM&t=7s

Entrevista realizada pela Voz do Caima