por Augusto Soares da Carvalhalva
Ouvi várias vezes este conto, contado pelo próprio Manel Fortunato, há uns sessenta e tal anos, nos serões de inverno em casa de minha avó materna.
De tudo, retive especialmente na memória a parte do enchimento das calças e do casaco com a rama do pinheiro, que ele próprio atirava ao lobo para o enganar, tudo contado com o alto dramatismo e suspense que só ele conseguia imprimir à história.
O Manel Fortunato era franzino e pequeno de tamanho, mas não lhe faltava energia, nem dedicação, era um caçador dos antigos, que não olhava se as horas eram diurnas ou nocturnas no encalço da caça que lhe era o sustento e vida, que ali, em Aguincheira, ele era diferente de todos os mais, ali a vida de todos era assente na vida de lavoura de sol a sol, já ele era doutros horários.
E, mesmo sendo véspera de natal, ele queria resolver o assunto de vez, aquela lebre do mato da Costa do Jogo, uns escassos 100 metros além da Ponte do Rio de Cabras, a quem já seguia os rastos desde a véspera, tinha de ser o almoço da Gracinda e dos seus três filhos.
Da feira dos vinte e três, chegara cedo para preparar a coisa, nem sequer parara na loja do Dário, no Marco, ali uns copitos bem conversados eram normalmente paragem obrigatória, amigos nunca ali faltavam.
Passou ligeiro, directo a casa, com tempo para endrominar bem o ajuste de contas com a lebre, a Ligeira, como ele já lhe chamava.
No dia seguinte, dia de consoada, mal acabou a ceia, lá foi ele, que ele queria vir cedo, queria amanhecer em casa o dia de Natal, … arma às costas, ligeiro, sozinho, que a cadela nem pensar levá-la, aquilo era um trabalho de silêncios.
– Onde vais Manel, a esta hora?
– Era a ti’ Angelina, à porta na última casa do lugar, na saída para Santa Cruz.
– Vou ali ver uma coisa e venho já – cortou ele rente a conversa, na sua mente só a Lebre existia.
Já com a Ponte do Rio de Cabras à vista, subiu à leira da Esterne, mesmo sobre a estrada, o campo arrendado que ele fazia – ele não, sabia-o toda a gente que era a Gracinda que o labutava, que a vida dele era arte, era a caça – já a noite assumira o bréu completo, aninhou-se contra o fundo do combro de cima, a meio da leira, ele sabia que era só esperar, que era ali, nas novidades esmeradas que a sua Grancinda cultivava, que a descarada da lebre fazia vida de rainha.
A noite entretanto ficara aluarada, bom sinal, a arma já engatilhada, puxou o chapéu sobre os olhos – os seus pequenos olhos pisqueiros que sempre trazia nos dias seguintes às Feiras de Vale de Cambra, dos fiéis encontros de amigos na loja do Jaquim da Benvinda – e, deixou-se passar pelo sono, que ainda era cedo, e ele sabia que o mínimo restolhar da erva o traria à liça.
E assim foi, p’raí umas dez da noite, ali estava ela a uns vinte metros, ele com a brisa a favor, ela descontraída e confiante, que ela já o conhecia de gingeira, sabia que as noites após os dias de Feira nunca eram noites de caça para o Fortunato.
Mas, desta vez, bem se enganou a lebre, que não se lembrou que o Almoço de Natal da família Fortunato tinha de ser de lebre.
Já o Fortunato tirava a folga do gatilho, quando se ouviu um ronco medonho vindo do carreiro que do caminho do Cabecinho dava entrada na Esterne, … a lebre voou num salto que ultrapassou a ramada que ladejava a estrada, ao primeiro pestanejar do Fortunato, já ela curvara para a Ponte do Rio de Cabras, e ele só teve tempo de rodar a arma para a esquerda, para o sítio do segundo ronco que de novo ecoou, agora ainda mais medonho, agora era fogo que viu incendiado no meio dos olhos vermelhos que o fuzilavam de raiva.
E o Fortunato, que era caçador já muito experimentado, num ápice viu tudo, era um lobo, um bicharoco dos antigos, era o lobo que nas redondezas era conhecido pelo Lobo Caça-Lebres, o maior inimigo e concorrente do Fortunato.
Numa fracção de segundo, a caçadeira ganhou vida e disparou, enquanto ele se erguia num salto, já tudo antecipando, … ah, mas o chumbo era miúdo, era chumbo para lebre, e àquela distancia eram cócegas em pele dura de lobo velho, … a velocidade a que ele arrancou surpreendeu o lobo, que em saltos compridos se pôs no seu encalço.
Sorte do Fortunato, na extrema sul da Esterne, coisa que ele ali nunca tinha reparado, surgiu-lhe um pinheiro, bem alto, como ele, em risco de vida, precisava, a espingarda largou-a no chão, que a espingarda só atrapalhava, isto tudo pensado enquanto já os primeiros três metros do pinheiro eram trepados pelo Fortunato, ainda o lobo se atropelava na videira velha que a sul da leira era no Verão a melhor sombra das redondezas.
Meia-noite, e nada, o lobo ali firme, ainda roncando lume.
Duas da manhã, tudo na mesma, não havia maneira, o lobo caça-lebres parece que queria caçar o Fortunato.
Mau, mau, … mas a cabecita esperta do Fortunato, finalmente, comecou a pensar – que outro qualquer e vulgar caçador teria morrido de medo logo que se viram os olhos do lobo a chapiscar lambras de lume – ora os lobos são bem mais burros que as raposas, … queres o Fortunato, vou-to dar:
Tirou as calças e encheu-as bem com rama do pinheiro, tirou o casaco e fez o mesmo, uniu ambas as metades com umas rodadas da sediela de pesca que sempre trazia consigo para as caniçadas, as armadilhas que fazia às perdizes, e, pumba, atirou o falso Fortunato lá para baixo.
Era o que o lobo mais queria, abocanhou o Fortunato e arrancou com o troféu.
Mas, mal passados cinco minutos, estava o lobo de volta, agora pior que nunca, dos cantos da boca resquicios ensanguentados das agulhas da rama do pinheiro diziam tudo.
E agora? Uma hora mais a pensar, … já sei, agora vou-te colar a boca, seu filho da mãe:
Ceroulas fora, camisa fora, tudo bem besuntado com a basta resina do ramo do pinheiro onde o Fortunato estava empoleirado, e tudo de novo cheio de rama bem apertada, era tal e qual o Fortunato, só um pouco mais anafado.
A reacção do lobo, foi a mesma, só que quando voltou já não berrava, da boca fechada espumava a cola mais pegajosa que se viu naquele tempo, uns dez minutos depois, já se ouvia o lobo a esbracejar no rio, a tentar livrar-se de tal peçonha.
No horizonte, lá dos lados de Santa Cruz, já brilhava o clarão que anunciava o raiar do dia de Natal.
E aí, mais um problema para o Fortunato, tinha que se despachar, de pila ao léu como é que ele ia chegar a casa, e logo a ti’ Angelina, que se levantava tão cedo.
Descer o pinheiro foi fácil, já correr era impossível, ele a esticar para baixo a camisola interior, a única coisa que lhe restava para tapar as miudezas, ainda por cima congeladas da geada da noite, andar depressa não dava, mesmo.
Na casa da ti’ Angelina já fumegava a chaminé, lá longe, em Castelões, os sinos tocaram as “primeiras” para a missa das seis da manhã, o Fortunato tinha que se despachar, sorrateiro, num relâmpago, passou a casa da ti’ Angelina, depois a casa do Ameal, a tia Rosa já na cozinha também, depois foi só contornar a casa do ti Luis, o sogro do Fortunato, e subir os degraus para sua casa.
À porta, a Gracinda:
– Então, home, onde é que andaste toda a noite, onde está a lebre?
– Ah, Gracinda, contenta-te comigo, melhor que a lebre sou eu, … não há lebre, vai ter de ser o galo do teu pai, … agora traz-me o cobertor da cama, põe mais achas na fogueira que eu te conto tudo, nem vais acreditar.
E contou tudo, tim por tintim, e no fim lembrou-se,
– Ó Gracinda, o pinheiro que me surgiu e me salvou, na extrema do lado da ponte, eu nunca me lembro de o lá ver!
– Ó home, estás tolo, não há lá pinheiro nenhum.
Teima daqui, teima dali, ainda o pessoal mais tardio de Aguincheira não tinha saído para a missa das onze e já a Gracinda e o Fortunato, na Esterne, se benziam, … foi milagre, balbuciou o Fortunato, não vendo ali o pinheiro onde tinha subido para se salvar, só podia ser milagre, só restos de roupa do Fortunato e de rama de pinheiro estraçalhada se viam no chão. E a Gracinda,
– Foi milagre de Natal, home!
Aos poucos foi-se sabendo do Milagre do Pinheiro de Natal, mas guardado a sete chaves nas arcas das memórias do lugar de Aguincheira, que ali era tudo gente crente mas sóbria, ninguém queria por ali povo de fora a meter bedelho.
Apesar das evidências, alguns do lugar, tinham muitas reservas em relação ao milagre de Natal, sobretudo porque o Fortunato era muito dado a contos e histórias.
Só uns meses depois, se confirmou o milagre, quando a ti’ Angelina, já mais aliviada da comoção em que andava últimamente, começou a contar que no madrugar do dia de Natal ouviu a música divina duns guisos de Natal a passar à sua porta, que tinha ido espreitar à janela e viu um anjo branco, quase nuzinho como todos os anjos, a passar esvoaçante, badalanfo uns sininhos lindos de cristal, … um Milagre de Natal.