Um Patriota

Início do livro COELHOSA de MACIEIRA de CAMBRA

por António Ayres Martins

Um Patriota

(Escrita da época)

Há homens que valem uma geração – tal é o grau de concentração intellectual a que attinge um cérebro humano quando imbuido n’um altruismo consolador, procura por todos os meios distribuir pelos seus semelhantes a somma íntima de benefícios com que a natureza prodigamente o dotara.

São estas as almas syntheses, são estes os génios creadores que consomem uma vida inteira, ora debruçados sobre as páginas dos livros, ora prescrutando os mysterios insondáveis da natureza, em busca d’um ideal sonhado.

Comtudo, é forçoso confessar que não é dado a todos pairar n’uma esphera tão elevada; muitos homens, sem revelarem as sublimidades d’Archymedes ou de Miguel Ângelo, podem também concorrer para o bem geral da humanidade, substituindo os traços luminosos do génio creador, pela bondade caridosa que ampara os infelizes e fortalece para a lucta pela existencia aqueles que foram atirados á senda da miséria pela iniquidade d’uma sociedade egoísta e sem compaixão.

O que vamos descrever não é certamente o fructo de uma elaboração genial, nem o fulgor de qualquer feito sublimado, fossem quaes fossem os estímulos que a impellissem.

Trata-se, pois, d’um assumpto modesto, mas que nem por isso deixa de merecer os louvores dos espíritos esclarecidos e imparciaes.

Tecer elogios, quando merecidos, jámais constituiu bajulação ou servilismo; pôr em relevo os serviços prestados ao paiz por algum cidadão amante de sua terra natal, é o dever de todos aquelles que se dedicam aos labôres da vida intellectual.

O cidadão, cujo nome encima o frontispício do templo que vamos descrever, é o sr. José António Martins, grande e abastado capitalista, em Coelhosa, de Macieira de Cambra.

Oriundo de honrados e laboriosos agricultores, emigrou para o Brazil em 1866, a bordo d’um navio de vela.

A princípio, como quasi todos aquelles que em criança vão procurar fortuna nas risonhas plagas sul-americanas, dedicou-se á vida commercial.

Mais tarde, bafejado pelos sorrisos da fortuna, que nem sempre acaricia a quem Ihe segue os passos fugitivos e incertos, conseguiu estabelecer-se como negociante de vinhos, n’uma importante casa da rua do Uruguayana n.° 27, no Rio de Janeiro.

Correram os annos, e com os annos augmentara a fortuna do honrado negociante, graças a um trabalho methodico e aturado, sem o qual não haverá empreza que possa triumphar.

Afinal, já senhor de grandes cabedaes é pai de família idolatrada, sentiu o sr. Martins o doce desejo do tornar a ver a terra natal, sempre querida para quem habita regiões distantes.

Em 1898, dicidiu-se, pois, o abastado commerciante, a voltar á terra que lhe fôra berço , e, ou porque sentisse necessidade definitiva de descançar, depois de tantas fadigas, ou porque o clima da Europa lhe fosse aconselhado como meio efficaz de restaurar a saude, partiu de vez do Rio de Janeiro, trazendo em sua companhia esposa e filhos.

Na sua vinda, porem, para o logar da infancia, precedera-o o seu irmão Abilio Martins de Pina, tambem importante commerciante de fumos, no Rio de Janeiro, o qual, não obstante uma ausencia de 30 annos, jámais se esquecera da terra que lhe dera o ser.

Pelo menos, é isto o que se pode inferir, a julgar pelos importantes predios que o mesmo mandou construir no logar de Coelhosa, construcções essas que transformaram um logarejo d’apparencias mesquinhas, n’uma estancia quasi principesca.

O logar de Coelhosa (também chamado Pinheiro Manso) pertence, como já dissemos, ao concelho de Macieira de Cambra, no districto de Aveiro.

Este concelho, circumdado, como se acha, por magestosas e altas montanhas, parece, aos olhos do viandante, uma região verdadeiramente alpina.

Attendendo á configuração heterogenea do territorio, podemos dividir a sua area em duas partes totalmente diversas sob todos de pontos de vista que a encaremos.

A primeira – evidentemente a mais importante – compõe-se d’uma formosa campina, ladeada por collinas de lindo aspecto e regada por alguns ribeiros de aguas crystalinas.

Esta planície – vulgarmente conhecida por Valle de Cambra – segue todo o percurso do rio Vigues, a começar nas alturas da Farrapa, separa em mais larga estensão os logares de Gandra e Muradal, lado esquerdo, dos povoados da Portella e Villa-Chã, lado direito, indo, afinal, perder-se nas fraldas accidentadas da grande serra de Castellões.

As freguezias que se encontram no perimetro do Valle de Cambra, bem como nas collinas circumvisinhas, são: do lado do norte, Vila-Chã, com mais de mil e quatro centos habitantes; do lado sul, Castellões, com mais de três mil habitantes; do lado nascente, Macieira de Cambra, séde da administração, bem como de quasi todas as repartições concelhias, com mais de dois mil e quinhentos habitantes; finalmente Roge, cuja população não é inferior á da freguezia antecedente.

A segunda parte do território de Cambra, estende-se para além das margens do rio Caima, cujas aguas impetuosas, correndo sobre um leito de granito, vão deslisar suavemente por entre as campinas de Arêas.

Esta região, muito mais extensa do que a precedente, contém as importantes freguezias de Cepellos, Junqueira e Aroes, todas rasoavelmente habitadas por uma população de laboriosos agricultores.

A população total do concelho pode ser computada em 18 mil habitantes, população que se acha, em parte, concentrada nas freguezias limitrophes do Vallede Cambra, em parte, disseminada pelas encostas das serranias.

Ora, entre as povoações que em menor espaço concentram maior numero de habitantes, devemos mencionar o logar da Gandra – o maior centro commercial e industrial de todo o concelho – não só por gosar d’uma situação mais commoda e aprazivel, como tambem por ser o ponto onde reunem os mercadores de muitas partes do districto, sobretudo aos domingos e no dia da grande feira que alli se effectua em 9 de cada mez.

Depois d’este, devemos concentrar toda a nossa attenção no importante povoado de Coelhosa, pois é nesse logar que foi edificado o templo que forma o assumpto do presente escripto.

Situado no declive d’uma extensa collina, mostra este logar, quando visto de longe, o aspecto d’uma villa em vida de formação.

A estrada de Oliveira a Arouca, ladiando-o pelo norte, separa-o do antigo largo da feira dos Dois; porém do ponto em que os antigos povoados foram scindidos, parte um trecho de estrada municipal que vae passar por sobre as águas do rio Vigues, um pouco acima de sua confluencia com o rio Caima.

Essa estrada, galgando o planalto de Arêas, chegará dentro em pouco ás cumiadas da serra de Castellões, pondo em communicação todo o Valle de Cambra com a vistosa capella de N. Sr.ª da Saúde, a santa mais festejada em todo o districto de Aveiro.

Mesmo no centro do povoado, e ladeando a estrada pela esquerda, ostentam-se os dois elegantes chalets mandados construir pelo Sr. Abilio Pina; um pouco mais abaixo, já se pode admirar a construcção do esplêndido palacete do Sr. José Antonio Martins, e do lado direito da estrada, alem do novo templo, aindase contam muitos edificios, todos de construcção moderna e bem acabada.

É evidente que n’esta ligeira notícia não é do nosso intento apresentar uma discripção detalhada de todo oconcelho de Cambra. Nem isso faria parte indispensavel d’este assumpto.

Comtudo, para melhor orientarmos o leitor, desejoso talvez de conhecer onde se passaram os factos que vamos narrar, reservamos para o fim desta resenha um capítulo, especial, por nós dedicado ao porvir da nossa terra natal.

Um Patriota