A ver passar o comboio

A ver passar o comboio

por Eva Cruz

Não passou um, passaram quatro, ora para lá, ora para cá.

Sentada na varanda, bebendo o sol deste dia primeiro de Novembro, este sol que tanta falta faz, especialmente em dias tristes como o de hoje, deu-me para ver o comboio passar.

Há largos anos que o pequeno comboio do Vale do Vouga passa nas traseiras de minha casa e raras são as vezes que lhe dou a atenção que ele merece.

É um tanto estranho só agora, nos fins da vida, este consciente apreciar da beleza e elegância das carruagens a darem a curva lá ao fundo, ao encontro repousante da estação.

Nem nos tempos em que ele era uma lagarta comprida, expirando nuvens de cansaço e vapor, me dei conta como agora, do apurado sentir daquela compassada música sobre os carris e do brilho cinzento e vermelho das suas cores deslizando por entre as árvores coloridas do Outono.

Como acontece em muitas outras situações em que a saudade vem ao de cima, lá vai a memória décadas atrás procurar aquele menino que corria para a janela a gritar mamã o gu, o gu, mal ouvia o apito ao longe.

Nada o fascinava tanto como o serpentear daquele ser vivo feito cordão de carruagens, a sua voz rouca de pouca-terra, pouca-terra e o gritinho de euforia da chegada e da partida.

Mas era sobretudo aquela poderosa máquina negra soprando para o ar imponentes baforadas de fumo branco que o estarrecia e lhe arregalava desmesuradamente os olhitos.

O menino, já mais crescido, sabia a hora da partida e da chegada de todos os comboios, as manobras que fazia, a mudança de agulhas, o momento de jorrar a água na sequiosa caldeira e o alimentar de carvão da sua faminta fornalha.

O menino foi crescendo sempre colado àquela janela.

O menino começou a deixar de o ser quando a escola lhe trocou o comboio pelos livros.

Mas a sua alma ficou sempre agarrada àquela janela, apesar de outras janelas muito mais amplas se abrirem pela vida fora para deixarem ver, entrar e sair muitos e longos comboios.

Talvez tenha sido essa lembrança que hoje me prendeu as mãos à varanda para não a deixar fugir… sem voltar a ver os comboios.

Por aqui me fico até o sol se despedir, debruçada na varanda e na recordação, a vê-los passar, os comboios que já não respiram como os de outrora.

Não tarda que passe um para nascente e outro para poente, um à procura da infância… e outro com as agulhas viradas para os carris da velhice.