A Romaria de Nossa Senhora da Saúde em Terras de Cambra (II)

A Romaria de Nossa Senhora da Saúde em Terras de Cambra (II)
Manuel de Almeida

PARTE II

(in, Voz de Cambra nº 694 de 15 de Junho de 2000)

INTRODUÇÃO

No nº   673 de 15.O7.99  da Voz de Cambra demos início à publicação de um texto de pesquisa histórica, relativo à Romaria de Nossa Senhora da Saúde.

No entanto, motivos de ordem profissional levaram a que suspendêssemos temporariamente a sua divulgação. Pela interrupção pedimos desculpa aos leitores do Jornal.

Aí opinamos sobre a antiguidade da festividade no nosso concelho e sobre o aparecimento do culto em Portugal.

A este propósito, recuamos até ao ano de 1570, tempo do rei D. Sebastião, e à cidade de Lisboa, local aonde teve início o culto, por força de um surto de “peste bubónica” ou do Egipto.

Aproveitamos então  para descrever a procissão, tal como a vimos nas ruas da baixa Lisboeta, no segundo domingo de Maio do ano de 1999.

É a continuação desse trabalho que nos propomos agora desenvolver:

2. A ROMARIA EM CAMBRA

A invocação, que não a Romaria, a Nossa Senhora da Saúde datará(1) de finais do século XVII ou inícios o século XVIII, o mais provável(2) e andará ligada àquela fase da expansão do culto de Maria que teve origem em 1640, com a Restauração do país.

Com efeito, as imagens mais antigas  existentes no Santuário datarão desse século, conforme a transcrição, retirada do INVENTÁRIO ARTÍSTICO DE PORTUGAL(3), o indica:

“Conserva-se na sacristia o antigo retábulo de madeira entalhada, da segunda metade do século XVIII, de ornatos concheados.

As duas esculturas antigas, a da Virgem com o Menino e de Stº António, são de calcário e oficina coimbrã, do século XVII, mas obras comuns e pequenas.

O cruzeiro, de tipo setecentista, levantava-se outrora perto da capela. Alta cruz, de braços oitavados e de terminações florais, renovada, sobre um pedestal pançado, assentando em degraus circulares”.

2.1. O culto no século XVIII – Capelas

Certo é que no início do século XVIII, já havia em Gestoso uma capela de invocação a Nossa Senhora da Saúde. Com esta foram inventariadas, no ano de 1721,  na freguesia de Castelões mais quatro, a saber:

§  Coelhosa, Nossa Senhora da Luz;

§  Macinhata, Nossa Senhora da Piedade, mandada erigir por Sebastião Fernandes, naquela data já defunto;

§  Cimo do lugar de Areias, S. Sebastião a que estavam obrigados quase metade dos moradores da freguesia;

§  Cavião, Nossa Senhora das Necessidades, a que estavam obrigados, para além dos moradores do lugar os de Ribeira, Paredes e Ameal;

Quanto, à de N. Senhora da Saúde estavam obrigados os residentes em Gestoso, Janardo, Decide, Vale de Lobo e Felgueira. Já havia aí festividade(4), porquanto:

nesta capela há concurso em 15 de Agosto, aonde se acha muito povo de várias freguesias e alguns mais do ano conforme a sua devoção, mas em muito menos quantidade e não consta evidentemente que faça milagres

Anos, depois, em 1758, novo Inquérito dá-nos conta de mais uma capela na freguesia de Castelões. Esta era particular de José Leite Neves, situava-se na Mouta e era invocação de Jesus,  Maria e José.

No que se refere a Nossa Senhora da Saúde a informação é ainda mais escassa. Infere-se, contudo, que não seria ainda importante(5), uma vez que na freguesia as romagens aos Santuários eram somente no dia da respectiva festa.

A capela de Nossa Senhora da Saúde seria então junto à povoação de Gestoso.

Também a lenda aponta no sentido de o culto no local não ser muito antigo. Na verdade, inquirido por nós um habitante idoso, residente junto ao actual recinto, disse-nos:

A capela antiga foi mandada erigir há cerca de 300 anos por um brasileiro de Ovar, em sítio donde a visse  de lá”(6).

                                              Disse ainda:

           “No meio do lugar não há nada a assinalar o sítio do aparecimento

Isto mesmo podemos constatar ao visitar a pequena  povoação, cujas casas se encontram distribuídas de um lado e outro do caminho, sendo que a data mais antiga que localizamos é numa dessas habitações, nitidamente rural e remonta a 1835.  Embora já do século XX, mereceu-nos sómente destaque o fontanário.

Quanto à aldeia é já provável a sua existência, em 1514, ano da publicação do foral de Cambra. Das duas povoações denominadas Gestoso, uma tinha dois moradores e situava-se próximo de Decide(7).

Em 1689 ainda deveria ter poucos habitantes, já que documento dessa data ainda a denomina de Póvoa de Gestoso(8). Se fosse maior teria sido mencionada de aldeia.

 2.2. O Santuário ao tempo da criação do bispado de Aveiro

Tudo parece apontar para que a mudança da pequena ermida do lugar de Gestoso para o actual local esteja relacionada com a criação, em 1774, da diocese de Aveiro.

Com efeito, data de 1782 a construção da nova capela, a cargo do padre Gonçalo Martins. Seria então um edifício corrente. É a partir de então que aumenta o número de romeiros e parece que a ligação aos povos da beira-mar.

A verdade é que um Inquérito mandado efectuar, em 1775, pelas novas autoridades eclesiásticas,  às freguesias, nomeadamente à de Castelões, não se lhe refere, o que pode indiciar então a sua menor importância(9).

Anos mais tarde, nos inícios do século XIX,  já a romaria tem grande expressão. Tanto assim é que D. Manuel, bispo de Aveiro, em circular impunha a pena de suspensão ipso facto a todos os sacerdotes, tanto seculares como regulares, que andassem a pedir missas na festividade e romagem, bem como a pena de excomunhão maior aos leigos transgressores em tal matéria. (10).

Apesar  da sua importância e do aumento dos proventos do Santuário, parece que haveria pouco zelo com os paramentos. Disso nos dá conta uma Visita Pastoral feita à freguesia em 1804.

Uma tal situação de incúria escandalizava os romeiros. Daí que, anos mais tarde, seja feita uma petição ao bispo para que as esmolas aí recebidas revertam para obras da capela e pagamento a um padre para aí celebrar missa ao domingo. Era tal a reivindicação que chegam a pedir ao rei que Gestoso passe a freguesia.

Naquilo que respeita à celebração da missa a petição foi atendida pelo bispo de Aveiro.  Demorou, porém, pouco tempo, uma vez que entre 1816 e 1818 já se não cumpria tal determinação.

Impasse este que vai continuar até 1834, altura em que o reitor de Castelões, João dos Santos Figueiredo, reconhece que abandonara a ermida. Redime-se deixando, por sua morte, que ocorreu a 19/8/1834, a quantia de 200 mil reis para obras.

Foram seus testamenteiros António Joaquim de Matos da Quinta da Igreja e o padre Joaquim Manuel Tavares do Bacêlo.

Em execução de tal testamento a capela foi ampliada. Com tais obras gastaram-se 129.600 reis que foram pagos a Luís António Moreira do lugar do Talhadouro. Estavam concluídas em 1840.

Por volta de 1850 deveria ser elevado o rendimento do Santuário, já que é conhecido novamente um diferendo pelo seu controle, entre o reitor de Castelões, António Gomes de Almeida e a Junta de Paróquia(11). Ganhou  a demanda o pároco.

Pese embora o aumento da renda, quem não parece ter beneficiado nada foi o Santuário. A ermida foi indo para a ruína, até que, anos mais tarde, chegou a República e com ela novos problemas.

2.3. O Santuário desde a implantação da República até 1927

Ao ser publicada a Lei de Separação da Igreja do Estado, pelo regime saído da revolução de 1910, um novo ciclo de conflitos vai iniciar-se entre as autoridades eclesiásticas e as comissões civis (cultuais) formadas para organizar a festa.

Sabemos destes diferendos  pela obra do Sr. Padre  Joaquim Manuel Tavares, ROMARIAS DE PORTUGAL, que temos vindo a seguir de perto e por outros escritos que colhemos sobre a época em questão.

No dizer daquele pároco, que nesta matéria não era de todo isento, por ser parte na contenda, o culto tinha decaído na vigência  das comissões civis, já que não ia além de uma missa cantada no dia 15 de Agosto, seguida de uma procissão. Cerimónias  estas que terminavam pelas 13 horas. Terá chegado a haver mesmo quem não quisesse pegar nos objectos de culto. (12)

Opinião um pouco diferente, encontramo-la em A. MARTINS FERREIRA(13). Este autor, que viveu também de perto os acontecimentos, diz-nos que nem tudo foi mau nas cultuais. É mesmo dessa época, 1923 ou 1924, ao tempo em que era presidente da comissão o capitalista Domingos Tavares Correia que o local foi abastecido de água e construída uma casa de arrecadação. Edifício este que terá sido posteriormente mandado demolir.

Nada disto obstava a que o local estivesse a ser mal gerido, como o relato(14), que abaixo se resume, o deixa transparecer:

 A ROMARIA EM 1918 – Resumo

. Não havia ornamentação condigna;

. É pedida a demissão dos mesários em funções.

(Nota: – O relato, que não se transcreve por estar em formato PDF, encontra-se integralmente transcrito na Voz de Cambra nº 696 de 15 de Julho de 2000)

É a partir de inícios de 1924 com a nomeação, para pároco da freguesia de Castelões, de Joaquim Manuel Tavares e mais tarde com a implantação do Estado Novo – golpe de 28 de Maio de 1926 – que um novo ciclo se vai iniciar na história do Santuário.

(Parte III)

BIBLIOGRAFIA
(1) – Outros Santuários terão aparecido, por esta altura no concelho, nomeada- mente o de Nossa Senhora da Ouvida em Viadal – Vide a Voz de Cambra nº 627 de 15.7.99.

(2) – Apesar de haver disponíveis, no Arquivo da Universidade de Coimbra, vários manuscritos – Cota III D, 1, 4,4, 91? – alusivos a VISITAÇÕES feitas no século XVII – anos de 1651 e 1686, entre outros –   à freguesia de Castelões e demais do concelho, que incorporavam então o bispado de Coimbra, parecem não lhes fazer referência.

Conhecedores da sua existência, através da vasta obra dos Senhores Professores José Pedro de Matos Paiva e Joaquim Carvalho, em deslocação breve feita ao referido Arquivo não lhe encontramos, como dito, menção.

A visita de 1651, decorreu em 26 de Agosto. Nessa altura a freguesia tinha três padres, a saber:  Jorge ??, coadjutor;  Lourenço Gomes e   António Bastos.

Trata-se de documentos importantíssimos para o conhecimento do viver das gentes de Cambra, no século XVII. Para além das questões religiosas os Visitantes tomavam conhecimento e parece que julgavam questões tão terrenas como as da amancebia e bruxaria, entre outras.

(3) – GONÇALVES. A  Nogueira – INVENTÁRIO ARTÍSTICO DE PORTUGAL,  DISTRITO DE AVEIRO, ZONA DE NORDESTE. LISBOA. ANO DE 1991,  PÁG. 161.

(4) – In, Memória Paroquial de 1721, freguesia de Castelões, publicada no nº 689 do Jornal de Cambra de 30/4/1955.

(5) – In, Memória Paroquial do ano de 1758, freguesia de Castelões, publicada também pelo Jornal de Cambra, em meados da década de 50, do século XX.

(6) – Informação amavelmente prestada, em 1996, por um Senhor com  93 ano sde idade. Tinha estado emigrado no Brasil.

(7) – MARQUES, Maria Clara Vide – MONOGRAFIA DE VALE DE CAMBRA – Câmara Municipal de Vale de Cambra. Ano de 1993. Pág. 16.

(8) – In, documento por nós transcrito no  Jornal A Voz de Cambra nº  476 de 15.01.91.

(9)  – Idem Jornal “A Voz de Cambra” nº 571 de 1.03.1995.

(10) – GASPAR, padre João Gonçalves – A DIOCESE DE AVEIRO,   SUBSÍDIOS PARA A SUA HISTÓRIA – Edição da Cúria Diocesana de Aveiro. Ano de 1964. Pág.109.

(11) – TAVARES, Joaquim Manuel – ROMARIAS DE PORTUGAL, PARA  AHISTÓRIA DE NOSSA SENHORA DA SERRA. Tipografia Civilização.  Porto. Ano de 1941.
– LEITE, Claudia e outros – Jornal a Voz de Cambra nº 511 de 15.7.92 e seguintes.
– MARQUES, Maria Clara Vide – obra citada, pág. 95 e 136.

(12) – TAVARES, Joaquim Manuel – obra citada pág. 111.

(13) – MARTINS FERREIRA,  A. – obras de 1942 e 1968, já várias vezes  citadas.

(14) – in, Jornal O Povo de Cambra de 25 de Agosto de 1918.

Manuel de Almeida

(Parte III)