O Ciclo do Milho

Ciclo do milho

por António Correia de Pinho

Recolha de Adolfo Coutinho, publicado em Castelonenses Ilustres, Vol. II, págs. 127 e seg.

A terra era previamente lavrada com charrua, para arejar e estrumar e, de seguida, gradada para nivelamento.

O milho era mais tarde, em finais de Abril ou em Maio, semeado com semeador manual, em linha.

Semeador manual

O semeador era de ferro, com uma lança para abertura do rego, um depósito para os grãos de milho com uma abertura inferior regulável, e era deslocado pela força dos dois braços de um homem que o impulsionava para a frente enquanto outro puxava um cordel na dianteira.

Os grãos eram largados nos sulcos a espaços regulares por accionamento de uma alavanca e a parte de trás do semeador ia tapando os mesmos sulcos.

A terra era primeiramente lavrada com a charrua

A planta brotava do chão e logo ia crescendo com haste seccionada e folhas lanceoladas, compridas, terminadas em cachos de flores que se iriam transformar mais tarde em espigas de grão amarelo apertado.

O campo era sachado para limpeza de ervas daninhas ao redor do caule da planta e depois mondado para eliminar os pés que não tinham vigor suficiente ou que estavam a mais.

Quando começava o calor em Junho, dava-se início também às regas. A água vinha do Rio Moscoso, abaixo dos Vales por um rego que atravessava a pequena aldeia dos Casais e, ao chegar ao campo, era encarreirada com os pés descalços para cada sector do milharal por regos secundários, após o que voltava ao rego principal para ser então, encaminhada para o sector seguinte.

Nós, crianças, perdiamo-nos no meio do milho alto. No Verão, sabia bem sentir o fresco da água debaixo dos pés descalços e o cheiro das folhas verdes em nosso redor. Era um hino da natureza.

Cortadas as bandeiras da haste superior do caule para servirem de pasto dos animais no Inverno, aguardava-se o amadurecimento próximo das espiga, já no final do Verão, para a apanha das mesmas para cestos transportados para as eiras.

Faziam-se desfolhadas, sempre à noite, para fugir à canícula; todo o povo da aldeia se reunia, em círculo, em redor da pilha de espigas colhidas à mão no campo e levadas para a eira em cestos ou carros de bois; retiravam-se 3 folhas que cobriam as espigas, no meio de amena cavaqueira e cantigas populares acompanhadas de harmónica e viola braguesa.

As infusas de vinho corriam de mão em mão. Em certas desfolhadas, espigas de milho-rei, de côr roxa, eram misturadas no meio das outras e, a quem calhasse uma, se concedia o direito, ou mesmo a obrigação, de ir à volta do círculo a abraçar as outras pessoas; era ocasião ansiada por namorados e namoradas para o ensejo de assim expressarem o seu querer disfarçadamente.

Liberdade mais aberta tinham os serandeiros, de rosto tapado para encobrir a identidade que ao fim e ao cabo não conseguiam de pleno disfarçar, pois eram normalmente conhecidos quer pelo traje quer por outra qualquer peculiaridade – que iam abraçar e tentar beijar as moçoilas presentes na roda. Em regra, os serandeiros traziam consigo uma maçã ou um manjerico.

Canastro com milho

As maçarocas eram mais tarde colocadas na eira e dois ou mais homens, munidos de “moiais’ (manguais), varas compridas de madeira polida a que se acoplava, na ponta, por meio de uma tira de couro, um barrote ou
malho quadrangular, também de madeira, com as arestas limadas; faziam rodar no ar os malhos de forma a que os mesmos fossem embater com violência sobre a maçaroca de milho, no chão, separando os grãos.

Quer se tratasse de dois homens de um só lado ou de dois de um lado e os outros dois do outro, as pancadas eram dadas alternadamente, “prás-prás’, de modo a não haver colisão de moiais, ou no ar ou no chão da eira.

Abel Bastos Pinho

O milho que não era malhado ia ser conservado e deixado a secar no canastro um espigueiro com uma base em pedra e a parte superior com tabuinhas de madeira e uma porta frontal e portinhas laterais de saída das espigas, também de madeira, tudo encimado por um telhado duplo de madeira ou telha.

O milho conservava-se aí durante alguns meses, após o que seguia o mesmo processo de malhação e ventilação, na altura em que se precisasse.

O milho depois de malhado ia para uma ventaneira – uma estrutura de madeira com um rodízio que fazia girar uma ventoínha, sendo o milho lançado numa caixa, escorrendo por um plano inclinado e a “moínha’ e cachuchos sopradas para trás, para o exterior por força do vento criado pela ventoínha.

Ventaneira, cesto e cabaz

As canas do milho eram sobrepostas formando as medas de palha, de forma cónica, para uso no Inverno como alimento ou cama dos animais, este último modificando-se em estrume.

Tia Rosa dos Vales

Tínhamos um quinhão no moínho dos Milagres, perto dos Casais, movido pelas águas de um rego alimentado pelo rio Moscoso, a caminho das Vales.

Colocava-se o milho na caixa superior quadrangular e afunilada (a morra); duas pedras lisas, redondas, constituíam as chamadas mós, sendo a de baixo fixa e sobre ela girava a móvel: a mó de cima tinha um buraco – o olho – por onde iam caindo os grãos de milho, espaçadamente, pelo movimento de vibração de uma peça de madeira – a taramela que ia batendo na superfície rugosa da mó superior.

Os grãos iam sendo moídos entre as duas mós, saindo daí a farinha, que, depois de peneirada, dava a farinha fina; a parte grossa que ficava era o farelo.

Moinho dos Milagres

O cheiro do farelo, o rolar das águas a mover a roda grande fora do moinho, o cheiro a lodo e a trutas – que as havia na altura no rio – tudo coberto pelas ramadas e circundado pelos milharais verdes e encimado pelo céu azul, cuja quietude era só quebrada pelo vento brando que mexia os bicos dos pinheiros vizinhos, trazia uma sensação de grandeza à criação, um enchimento de alma inigualável, um aconchego de Deus pela natureza.

Interior do moinho

Os piscos e chascos dançavam de árvore em árvore, de arbusto em arbusto, alimentando-se de quase nada.

A Tia Angelina colocava a farinha fina num tabuleiro rectangular de madeira – a masseira – e amassava-a com uma pá, juntando-lhe água a ferver para “‘desenfarinhar”.

Ajuntada a massa com uma pá, sem mãos, a mesma recozia. Depois de recozida era aberta com a pá e então amassava-se com as mãos, incluindo os nós dos dedos.

Juntava-se farinha de centeio para ligar a massa e também fermento para levedar e amassava-se de novo com as mãos. A minha avó, e mais tarde a minha mãe, fazia uma cruz por cima para que a massa fosse abençoada e deixava-se levedar a mesma por algumas horas.

Enquanto a massa levedava, aquecia-se o forno abobadado a tijolo refractário com achas de lenha.

Da primeira massa, retirada da masseira, faziam-se bolos finos, redondos, que eram feitos de porta aberta; uma das artes culinárias caseiras de grande sucesso, resultando em petisco por todos ansiado, nascia da colocação de sardinhas por cima dos bolos ou rodelas de chouriço no seu interior.

O aroma e o ressumar do óleo das sardinhas por sobre e para dentro dos bolos trazem-me memórias de fazer crescer água na boca e de activar desmesuradamente o palato.

Finalmente, moldavam-se as broas, arredondadas, metiam-se no forno e fechava-se a porta de ferro com barro.

Quando as broas saíam do forno, a casca tinha que estar estalada e acastanhada. Duravam uma semana.

Estou a ver Tia Angelina, já nos derradeiros noventa anos (pregou-nos a partida de parar nos noventa e oito – não sem antes ter ido à Deveza – ao lume, sentada numa velha cadeira de braços, um assento de camioneta que meu pai descobrira nas suas divagações pelos ferros – velhos!), corcovada, o corpo quase a fechar um círculo, a caminhar de foicinha na mão em direcção à Deveza, onde cortava erva para os animais.

Por essa altura, mantinha propositadamente acesso aos ovos das galinhas, para vender alguns, não que precisasse de dinheiro, pois não tinha onde o gastar, mas antes para o dar aos netos.

À noite, já ensonado, eu participava, com o meu avô – e padrinho Ti Alberto Fuste, da oração proferida pela avó Angelina a encerrar o dia e a anunciar a escuridão, as trevas, o esconjuro do mafarrico, o temor a Deus e o pedido da Sua protecção e do Seu amparo:

Com Deus me deito
E com Deus me levanto
Co’a graça de Deus e do Espírito Santo
Nossa Senhora me cubra com o seu manto.

Se eu bem coberto fôr
Não terei medo nem temor
Nem de coisa como eu for.

Senhor, eu deitar quero
Minha alma vos entrego.

Se eu dormir embalai-me
Se eu morrer alumiai-me
Com as três velas acesas
Da Santíssima Trindade.

Louvado seja Deus que já me deitei
Sete anjinhos encontrei
Três aos pés, quatro à cabeceira
Jesus na dianteira.

Deitei os olhos ao Céu
Pensamento na Glória
Jesus cuido que agora
Jesus Cristo é na Custódia.

António Correia de Pinho
31 de Dezembro de 2002