O Templo de S. Gonçalo

Capela de Coelhosa

por António Ayres Martins

Eis-nos, emfim, chegados ao ponto capital d’esta obra.

Vamos, pois, esboçar, a traços largos, o trabalho architectonico do edificio sacro, ainda que para isso nos falleçam talento e conhecimentos, téchnicos da arte sublime de Viollet-le-duc.

E mesmo que a nossa penna obedecesse a um impulso de mestre na arte de construir, não nos embrenhariamos n’um labyrintho de termos descriptivos, para o que seria necessario um tratado magistral, e não um esboço imperfeito, embora sufficiente para o fim que desejamos attingir.

A capella de S. Gonçalo, d’apparencia elegante e agradavel, foi planeada pelo engenheiro Evaristo, do Porto, e construida pelo architecto Abel Tavares de Almeida.

custo total da obra, inçluindo terreno e mais dependencias, orçou pela quantia de onze contos de reis, segundo affirmações do proprio sr. José Antonio Martins.

Para darmos uma ideia approximada do trabalho dispendido n’esta construcção, teriamos tambem de escrever longas paginas, e quem não dispõe de conhecimentos bastantes para uma leve exposição da arte de edificar, muito menos se pode abalançar a fazer descripções praticas, aliás inuteis, para quem busca na leitura mais impressões recreativas do que conhecimentos aprofundados sobre qualquer assumpto.

Portanto, basta dizer-se que o granito empregado n’este edificio, foi sempre cuidadosamente escolhido nas pedreiras dos montes circumvisinhos, principalmente nas serranias de Aljares e monte do Crasto, cujos flancos alojam rochedos da melhor qualidade.

Todas as madeiras empregadas na construcção interior do templo, tambem foram escolhidas com a maior precaução, muito principalmente as que foram destinadas á construcção do côro e porta principal.

As telhas, os azulejos, a vidraçaria pölychromica e as tintas empregadas, tanto no interior como no exterior, tudo foi adquirido como material de primeira qualidade.

O local onde se levantou o novo monumento, apresenta a fórma d’um longo rectangulo; que se extende á beira da estrada, no sentido longitudinal, tendo do lado opposto, como predios fronteiros, os dois elegantes chalets do sr. Abilio Pina.

A parte d’este rectangulo que se dilata entre os fundos da sacristia e o muro terminal de todo o terreno, constitue o amplo arraial, todo amuralhado em volta, e só communicando com a via publica, por meio de escadas apropriadas.

A parte restante do terreno, isto é, aquella que rodeia o proprio edificio, fórma o espaçoso e bem construido atrio, ladeado por um gradil de ferro e communicando com uma travessa inferior, por meio d’uma escadaria de granito.

Esta escadaria, que dá accesso para o atrio, defronta justamente com a porta principal do templo.

A nova capella, vista de perto, no seu conjuncto exterior, não inspira a compuncção mystica d’uma cathedral medieval.

O seu estylo architectonico é todo moderno, embora as suas vidraçarias lateraes, reflectindo raios de luz multicôr, evoquem na alma absorta do viandante algumas leves reminiscencias das antigas construções ogivaes.

A porta principal, bastante solida e ampla, aponta para o sul, como é de uso geral em quasi todos os templos catholicos.

Um pouco acima dos humbraes e quasi na linha media transversal do frontispicio, vêem se dois nichos que alojam duas imagens de tamanho regular, ficando no da direita S. Sebastião e no da esquerda S.ta Anna.

Estes nomes eram os dos progenitores do sr. José António Martins.

Acima d’estas imagens, entre a arcada da janella do côro e collocada uma lápide rectangular de granito, onde se
lê, em grandes caractéres n’ella gravados, o seguinte:


– GLORIA TIBI DOMINE –
MANDADA CONSTRUIR
PELO BENEMERITO
JOSÉ ANTONI0 MARTINS
MDCCCC


Finalmente, como: remate da fachada principal do edificio, vê-se um frontão triangular, tendo no interior do vertice superior uma grinalda da qual pendem duas fitas symbolicas em forma de laço, tudo em granito.

No cume do frontão, como auriflamma de luz triumphante, ergue-se a cruz magestosa, symbolo redemptor de todos os fieis da egreja catholica.

Quanto ás fachadas lateraes da capella; apenas podemos acrescentar que as suas dimensões foram bem delineadas, assim tambem as janellas que as adornam.

A torre, ainda que não attinja proporções extraordinarias, nem por isso deixa de realçar o conjuncto do edificio, que todo se harmonisa num pensamento arrojado e até grandioso.

Os sinos, construidos na grande fundição de Rocha & C.ª, do Porto, são de voz muito agradavel, e quando tocados com certa habilidade desferem accordes harmoniosos e alegres.

Dos tres sinos, o maior foi dedicado a S. Gonçalo, pelo sr. José Antonio Martins Junior; o segundo, a N. S. da Boa-Viagem, pela ex.ma sr.ª D. Alzira de Oliveira Martins; e o terceiro, ao Sagrado Coração de Maria, pela ex.ma sr. D. Alzira de Oliveira Martins, Filha; esposa e filhos do benemerito sr. Martins.

As escadas da torre foram construidas exteriormente, pelo lado posterior, até á entrada do côro: d’ahi para cima, até á plataforma onde ficam os sinos, os degraus são interiores e guardam a forma espiral.

Finalmente, a pyramide que encima a torre, ostenta, nas quatro faces exteriores, bellos ornamentos em azulejos azues, que reflectem maravilhosamente as ondulações do sol, no occaso, rematada por uma cruz de ferro, de aspecto altivo e arrojado, como o pensamento que se eleva para as regiões do infinito.

Se o aspecto exterior do templo encanta pela sua simplicidade e bom gosto, é certo que a parte interior, pela sua riqueza artistica e boa disposição, ainda mais encanta e domina todos aquelles que a penetram, quer como simples visitantes, quer como devotos contrictos, a escutar as preces feitas a Deus.

As práticas do culto catholico exigem certo apparáto a que os fieis se habituaram desde tempos muito remotos.

Por isso, bem andou o benemerito constructor do templo, aceitando as inspirações do padre Joaquim Manuel Tavares, que, no delineamento das suas disposições interiores, deu provas d’um gosto excessivamente apurado.

Quem entrar pela porta principal da capella, depara logo com duas elegantes columnas de granito, encimadas por capiteis da ordem corinthia, as quaes servem de apoio ao elegante e espaçoso côro.

Este, construido de madeiras de primeira qualidade, contem todas as commodidades requisitadas para o fim a que foi destinado.

Um grande candelabro, pendente do tecto, pode alumiar as estantes, durante a noite, cm quaesquer officios divinos.

O tecto da capella é todo pintado de azul celeste, sobre o qual realçam diversos ornatos em branco, destacando se, em cada um dos seus quatro angulos, as armas de Portugal, do Brazil, da Santa Sé e do Bispado do Porto.

Em baixo, na mesma linha das columnas que supportam o côro, vê-se, á direita, a pia baptismal, toda construida de granito; á esquerda, n’um recinto encravado na parte inferior da torre, a imagem do Senhor dos Passos.

Mais adiante, a meio caminho da capella-mór, destacam se, sobre os muros lateraes, dois pulpitos, artisticamente talhados em boa madeira de lei.

Dois grandes candelabros pendentes do tecto, illuminam todo o ambito do templo, no caso de haver devoções nocturnas.

Mais adiante, justamente aos lados da teia de balaustres, que separa a capella-mór, vêem-se dois bellos altares, a branco e ouro, luxuosamente adornados por vasos de flôres artificiaes.

No altar da direita, ostenta-se, entre duas columnas corinthias, a formosa imagem de N. S. da Boa-Viagem – um verdadeiro primor no genero de esculptura sacra.

O altar da esquerda, tao artisticamente entalhado como o precedente, e do mesmo formato, foi dedicado ao Sagrado Coração de Maria.

O altar-mór, d’uma construcção mais rica e mais sumptuosa do que os antecedentes, contem duas imagens d’um gosto artistico inexcedivel: á direita N. S. da Soledade; á esquerda, o milagroso S. José – padroeiro de toda a familia Martins.

Em baixo, n’um aposento velado e de quietação mystica, vê-se a imagem do Senhor Morto – tambem obra de grande merecimento artistico.

No alto, como que a sair da penumbra d’um nicho symbolico, campeia a imagem triumphante de S. Gonçalo, o orago do novo templo; o santo’ a quem os povos da visinhança costumam dirigir as suas preces fervorosas.

Aos lados, no alto das quatro columnas que ornamentam o grande altar, ostentam se dois anjos a segurar uma facha onde se lê a saudação sagradą de todo o catholicismo:


GLORIA IN CELSIS DEO


Um explendido candelabro d’um cinżelamento dos mais delicados termina o rico apparato da capella-mór, – uma das mais bellas que temos observado.

Finalmente, no ultimo compartimento do templo quasi ao pé da porta que dá sahida da sachristia, ainda se póde vêr, além dos moveis que guardam as alfaias e paramentos, um pequeno altar que perténceu á antiga capella e sobre o qual estão depositadas as imagens de N. S. da Luz, de S.ta Catharina e de S. Gonçalo.

E ao lado direito, n’um quadro pendente da parede, o diploma seguinte:

D. Antonio José de Sousa Barroso, por mercê de Deus e da Santa Sé Apostolica, Bispo do Porto, do Conselho de S. M. F., Prelado assistente ao Solio Pontificio, Par do Reino, Gran Cruz da Ordem de N.
Senhora da Conceição de Villa Viçosa, etc.

Aos que esta Provisão virem, Saude e Benção em Jesus Christo, Nosso Senhor:

Fazemos saber que por parte do nosso Diocesano José Antonio Martins, proprietario, do logar de Coelhosa, freguezia de S. Pedro de Castellões, nos foi exposto que tendo sido por nós benzidas e indulgenciadas as imagens do Senhor dos Passos, SS.mo Coração de Maria, Senhora da Boa-Viagem, Senhora da Soledade, Senhor Morto, S. Gonçalo e S. José, desejava por isso o competente diploma, d’onde constasse não só a benção como as indulgencias concedidas aos fieis que orassem diante das referidas imagens: Attendendo nós á sua petição, mandamos expedir a presente, pelo theor da qual certificamos que as referidas imagens foram por nós benzidas e indulgenciadas, com quarenta dias d’indulgencias, a favor de todos os fieis que attenta e devotamente orarem deante de cada uma das mesmas Imagens na forma prescripta pela Santa Egreja.

E para para seu titulo mandamos passar a presente; que será registada como é d’estylo.

Dada no Porto e Paço Episcopal sob nossa assignatura e sello de armas do Bispado, aos 12 de Dezembro de 1902: E eu Padre Julio Albino Ferreira, Escrivão da Camara Ecclesiastica, a escrevi.
(sello d’armas)
† Anlonio, Bispo do Porto.
Pela Chancellaria
P.e Barroso.


Considerado no seu conjuncto, podemos affirmar que o novo templo nada deixa a desejar, sob qualquer ponto de vista que o encaremos.

Já o dissemos e repetimos ainda, que um edificio, verdadeiramente monumental e sujeito ás regras classicas de qualquer estylo architectonico, seria obra quasi impossivel, nas condições em que este foi construido.

Nem o recurso d’um só homem seria sufficiente para levar a cabo semelhante empreza.

Uma epopêa de pedra, como a da Batalha, só se faz uma vez. Nem seria facil encontrar um artista de genio, capaz de traçar no papel os floroes rendilhados que os operarios haviam de esculpir no marmore e no granito.

O sopro d’inspiração que animou o cinzel de Phidias, ao traçar as columnas impereciveis do Parthenon, esvaiu-se completamente no borborinho das gerações modernas, que só procuram o que é permittido gosar n’um dia.

Baqueou tambęm a crença medieval que animou os cinzeis dos mestres Villard, Pierre e Robert, elevando-os tão alto como os grandes architectos da Grecia antiga.

As cupulas das velhas cathedraes, foram o producto d’uma fé viva e creadora ; mas essa fé, digam o que disserem, já não inspira os artistas septicos da actualidade.

Só por uma hypocrisia requintada se póde voltar á fé que se dissolveu.

E foi por virtude d’esse retrocesso desmoralisador, que se levantou a mole bastarda do convento de Mafra; foi tambem por obediencia a principios caducos, que se ergueram as monstruosidades architectonicas dos principios do seculo XIX, classificadas pelos estheticos modernos, com o nome caracteristico de construcções de estylo recócó ou bysantino.

Portanto, se a crença do homem do seculo XX é modesta, que o artista conserve tambem a modestia no proprio estylo dos templos que construir.

O contrario d’isto, será cairmos irremediavelmente no inconsequente, no disparate.

O templo de S. Gonçalo, felizmente, não se resente de semelhantes contradições artisticas.

É de proporções modestas e rasoaveis, sem ostentar as fulgencias d’um estylo deslumbrante, que quasi sempre occulta, no rendilhado de suas rosaceas, o destempero d’um espirito desiquilibrado.

Não apresenta, é verdade, o ar sombrio das antigas basilicas romanas; no seu interior cahem jôrros de luz, ligeiramente coados pelas vidraçarias polychromas que adornam as janellas lateraes; e o seu porte exterior, imitando um pouco o vôo altivo das cathedraes mediévicas, convida o espirito, não para a compuncção triste e resignada dos primitivos tempos das persiguições romanas; mas para a devoção infinita do pensamento, para a conquista d’um ideal, que hade ter por principio e fim a felicidade suprema da humanidade!

O Templo de S. Gonçalo